- Folha de S. Paulo
O chavismo já deixou de produzir benefícios para a Venezuela há muito tempo
Acho que foi o economista indiano Amartya Sen quem disse que, quando as coisas vão bem, quando todo mundo está enriquecendo, a população pode até tolerar o autoritarismo. É o caso da China hoje, do Brasil dos anos 70, da Venezuela no auge do chavismo. O problema é quando a crise chega e você lembra que não tem mais direito de dar palpite sobre como vai ser dividida a conta.
É por isso, aliás, que o Brasil tem que estrangular no berço qualquer avanço autoritário do governo Bolsonaro em caso de melhora do cenário econômico. A Venezuela não ficou assim porque Chávez deu um golpe de Estado, mas porque lentamente corroeu as liberdades e garantias institucionais enquanto a economia ia bem.
O chavismo já deixou de produzir benefícios para a Venezuela há muito, muito tempo. Só sobrevive no poder porque as eleições são fraudadas e porque Maduro ofereceu às forças armadas algo que nenhum governo democrático conseguiria entregar: o controle total sobre a riqueza venezuelana.
A esquerda latino-americana apoiou Chávez muito além do que seria razoável, e a defesa de Maduro nas atuais circunstâncias é, francamente, grotesca.
Em alguns casos, o apoio se deu pelas vantagens que Chávez oferecia com petróleo venezuelano a governos amigos em Cuba ou na Nicarágua. Outras vezes —e esse foi o caso da esquerda brasileira— o apoio ao chavismo era uma forma de compensar os radicais locais pelos compromissos com o establishment. O PT, por exemplo, elogiava a atitude combativa do chavismo de dia e de noite fechava com o PMDB.
Nos últimos tempos, essa complacência vem diminuindo, ao menos no resto da América Latina.
No ano passado participei de uma conferência sobre a esquerda latino-americana promovida pela revista americana Dissent. Havia palestrantes de todos os países do continente que tiveram governos de esquerda recentemente. Alguns tinham perfil mais socialista, outros eram mais próximos da social-democracia europeia. Mas mesmo os palestrantes que estavam claramente à esquerda do PT —que, no Brasil, seriam do PSOL, digamos— sabiam que Maduro havia dado errado.
Havia diversidade de opiniões. Muita gente dizia, por exemplo, que os primeiros anos do chavismo trouxeram conquistas importantes. Alguns palestrantes enfatizaram que outras experiências bolivarianas tiveram resultados melhores —isso é verdade sobre a Bolívia, por exemplo.
O que não ouvi ninguém dizer é que o chavismo ainda valesse a pena.
E muita gente dos países com partidos de esquerda mais claramente social-democratas, como o Chile ou o Uruguai, reclamava da arma que Maduro dava para a extrema-direita continental.
É triste que uma transição democrática venezuelana tenha que começar com vizinhos como Trump e Bolsonaro. Trump, lembrem-se, já disse: “Não acredito que nós saímos do Iraque sem levar o petróleo!”.
Mas a esquerda continental fez isso consigo mesma. Alguns anos atrás, havia governos de esquerda por toda parte. Uma transição com melhores garantias para a soberania venezuelana teria sido muito mais fácil. Essa oportunidade foi perdida.
Agora o que resta é seguir o conselho do velho Mujica, um dos grandes nomes de sua geração de governantes. É preciso defender eleições livres na Venezuela, porque a alternativa será uma guerra.
*Celso Rocha de Barros é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
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