terça-feira, 8 de outubro de 2019

Carlos Andreazza - A chance de Aras

O Globo

Augusto Aras assumiu. Não existe mais. Somente — sob o resgate urgente do princípio da impessoalidade — o procurador-geral da República; aquele que, na condição de chefe do Ministério Público Federal, indicado pelo presidente e aprovado pelo Senado, recebeu a delegação da sociedade para mover a ação penal. Não é pouca responsabilidade: o controle do gatilho acusador. Missão que desempenhará bem se tiver a Constituição como único norte. Seria uma inovação, depois dos anos da doença janotista, cujo vírus justiceiro ainda por muito destruirá. Seria uma inovação; e o único caminho de recuperação institucional para o Brasil: um choque de Constituição.

Em depressão política profunda, talvez o maior déficit do país seja o de respeito ao que diz a legislação. O novo PGR terá uma chance de contribuir para a estabilidade republicana se desarticular a máquina lavajatista-corporativa por meio da qual Rodrigo Janot desdobrou quatro anos de projeto pessoal. O novo PGR tem uma chance; isto porque será o primeiro em anos a ocupar tal posição sem que a escolha deva algo à lista tríplice do sindicato.

O novo PGR tem a chance de ser um PGR livre; isto porque o maior problema do MPF —para o que concorreu a imposição da tal lista tríplice como virtude da independência em relação a governantes —é haver se voltado para dentro, para o anabolismo da agenda de classe, na prática determinando, no grito, o procurador-geral da República, e transferindo para si o poder de ascendência outrora atacado como nocivo na mão do presidente.

Operando —autorizado pela omissão do STF —sem qualquer controle externo, em busca de um grau de autonomia sem precedentes no arranjo que garante o equilíbrio democrático, em mui grande medida o MPF se constituiu em quarto Poder; um Poder informal que não raro se esticou para além dos marcos da lei, o que daria em ativismo e jacobinismo. Isso serve para a Lava-Jato, por óbvio. Para que nos lembremos de que não existe MP paralelo; de que não há combate à corrupção que autorize a corrupção da lei; e de que lei, seguir a lei, não é detalhe, não é filigrana, não é tecnicalidade.

O homicida ficcional Janot, escolhido e reconduzido por Dilma Rousseff, encabeçou — por duas vezes —a lista tríplice sindical; o que, per se, já deveria valer como depreciação fatal da coisa. Sob pressão da base sindical que o elegera, devedor que lhe era, ele entendeu que poderia dar vazão ao lavajatismo como forma de robustecer o programa de aceleração do crescimento do MPF.

Não tardaria a patrocinar aquela colaboração premiada ilegal dos irmãos Batista, do que desenrolaria a denúncia inepta contra Michel Temer e o assassinato de uma reforma da Previdência prejudicial aos interesses do funcionalismo público de mais alto escalão —do qual ele, Janot, faz parte.

O mal inoculado pela doença janotista seria determinante para que a gestão de Raquel Dodge fosse tão limitada. Escolhida por um presidente fraco e enredado na trama lavajatista, Temer, e escolhida a partir da lista tríplice corporativa, ela esteve amarrada de todos os lados, pela associação a um político de imagem suja e pela dívida com a máquina sindical independente que a elencara entre os três subprocuradores elegíveis. Ainda assim, conseguiu fazer regredir a febre vazadora seletiva de delações premiadas que, sob Janot, manifestava-se quase que diariamente.

O novo PGR, repito, nada deve ao sindicato. Mas precisa compreender que tampouco deve algo ao presidente. O canto da sereia — o papo de “amor à primeira vista” —é atraente. E é comum que um governante tente se valer da prerrogativa de indicar para tentar capturar o indicado. No caso de Bolsonaro, tanto mais, sendo da natureza autoritária do bolsonarismo a inadmissão de estruturas do aparelho público que não subjugadas pela força centralizadora do líder carismático.

Que o novo PGR se afaste de qualquer alinhamento político-ideológico com governo; e que nunca se esqueça do que significou a maneira —o cozimento a fogo brando, com longa e intensa circulação de dossiês dilapidadores de reputações, e o presidente inseguro, desconfiado, sobre as opções até o fim —como foi escolhido: um processo deliberado, tipicamente bolsonarista, de esvaziamento do papel do PGR, destinado sobretudo a provocar a necessidade de submissão do candidato.

Depois de se curvar a todos os beija-mãos de Brasília, ajustando seu verbo ao interlocutor, que o PGR entenda que já é; e que, sendo, não será para cumprir expectativas de presidente. Que não queira, porém, firmar posição —para mostrar independência — investindo contra Bolsonaro. Não. Basta que se comporte com o distanciamento formal próprio ao cargo. As balizas da institucionalidade darão conta do resto. Não será fácil. É preciso coragem para ser impessoal e apenas seguir a lei no Brasil de 2019.

Um comentário:

Unknown disse...

Mais uma vez Andreazza faz uma elucidadora análise crítica dos erros da Lava jato comandada pelo louco Janot