- Valor Econômico / Eu &Fim de Semana
“Desbancarizado” invadiu o noticiário recente quando o governo descobriu que dezenas de milhões de brasileiros são pobres, mas não sabia onde estavam, nem como encontrá-los
Um dos efeitos colaterais da disseminação do coronavírus é a falta de palavras e o aparecimento de novas palavras para designar e expressar as situações repentinas e inesperadas de uma sociedade enferma.
Sociólogos, antropólogos e linguistas estão munidos do aparato científico para fazer verdadeira arqueologia de cada palavra e nela identificar não só sua origem em tradições e circunstâncias remotas, mas também sua origem em carências atuais.
Quando o vazio se instala, em decorrência de rupturas sociais, como as guerras, as epidemias, os desastres naturais, a falência da ordem social e política, palavras se tornam obsoletas porque, por meio delas, já não há o que dizer.
Então, palavras são modificadas e novas são inventadas. As situações sociais se traduzem em consciência social e na linguagem pela qual essa consciência se torna comunicável porque legado da experiência humana. Por meio dela a experiência se torna memória.
As palavras carregam informações sobre a história de sua formação e nela a consciência social profunda da sociedade, na sutileza dos significados que a palavra contém. “Genro” é uma palavra simples que todos conhecem. É palavra que designa o homem que gera filhos para o sogro, um pai emprestado. Porque o pai de uma mulher está interditado para procriação com a filha pelo tabu do incesto.
A sociedade patriarcal narra sua história e expõe as regras sociais de sua persistência e de sua estrutura por meio de uma palavra como essa. A eficácia do seu sentido está no fato simples de que o incesto é socialmente abominado.
Muitos linchamentos, no Brasil, são praticados por grupos de vizinhos e parentes que compartilham a consciência de que o incesto é uma aberração.
É significativo que, em algumas das nossas línguas indígenas, a palavra “avô” seja a mesma palavra para “tio”. No Brasil, especialmente em São Paulo, em que mesmo a elite tinha claras origens indígenas, foi comum o casamento avuncular, do tio com a sobrinha, forma significativa de contornar a interdição do incesto. Palavras não são rótulos.
Diferentes das palavras herdadas das sociedades tradicionais, que eram palavras de afirmação e confirmação de um modo social de ser, as palavras que têm surgido, no Brasil pós-moderno, são palavras para designar o não ter e o não ser: sem-terra, sem-teto, excluídos. São do vocabulário das vítimas do banimento das possibilidades de integração plena no mutilado capitalismo da sociedade brasileira. Expressões de sua consciência de não pertencimento.
Alienado, e supondo não haver palavra brasileira para denominar o meio de pagamento da ajuda aos desvalidos da pandemia, o governo deu-lhe um nome estrangeiro, “voucher”. Todo brasileiro conhece a palavra “vale”, também os que carecem do dinheiro que representa, sem ter que recorrer à frescura da palavra desconhecida.
Mas a palavra que constitui uma verdadeira revelação de que, para o poder, não somos o país que somos, é a palavra “desbancarizados”. Isto é, gente que não tem conta bancária e, portanto, à margem do sistema financeiro que domina a economia e em nome do qual esse governo manda.
A palavra invadiu o noticiário recente quando o governo descobriu que dezenas de milhões de brasileiros são pobres, mas não sabia onde estavam nem como encontrá-los. Por isso, tem dificuldade para fazer chegar-lhes às mãos o dinheiro de que carecem para sobreviver na economia anormal que aflige a sociedade provisória da pandemia.
Não é palavra de agora, pois já a ouvira no ano passado. Mas é uma palavra desta crise. Para dizer o que deve ser dito e expressar uma das fragilidades da relação entre o Estado e o povo. A palavra é necessária para dar sentido às peculiaridades dessa exclusão e assegurar a precária terapêutica social da economia do momento.
“Desbancarizado” é, pois, quem está confinado na multidão residual do nosso subcapitalismo, aquele que não tem lugar no sistema econômico anômalo que nos enquadrou e domina. O que sugere que os maiores inimigos do capitalismo, aqui, são os próprios capitalistas da linhagem neoliberal, que dele expurga um número imenso de pessoas.
Estas novas palavras de uma sociedade que foi minada pelas desigualdades e pelas iniquidades de um modo irracional de acumulação da riqueza, são palavras do modo de vida provisório dos sem alternativa, que já não expressam a própria consciência da vítima. Expressam a consciência dos que representam os fatores de sua vitimação.
São palavras derivadas do vocabulário da dominação econômica excludente, de um neoliberalismo econômico que rotula as vítimas com designações que pressupõem que os pobres são pobres porque não tem um nome na lógica do que os empobreceu.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, organizador e co-autor de "A Morte e os Mortos na Sociedade Brasileira" (Hucitec).
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