- Valor Econômico
Trabalhador “comum” será mais penalizado na crise que servidor público
A contrapartida que o ministro da Economia, Paulo Guedes, quer de Estados e municípios para que recebam ajuda financeira do governo federal chega a ser surrealista. No momento em as receitas estaduais e municipais estão em queda livre e as empresas privadas demitem, reduzem salários e suspendem contratos de seus trabalhadores, Guedes propõe que os servidores públicos fiquem apenas sem reajuste salarial durante 18 meses. Ou seja, até o fim de 2021. Em 2022, que será um ano de eleições gerais, eles poderão ter aumento salarial.
Se este é o sacrifício possível a ser exigido dos servidores, em meio a uma situação de calamidade pública, em que milhares de pessoas estão morrendo e outros milhares perdendo seus empregos, então as propostas de emenda constitucional 186 e 188, encaminhadas no ano passado por Guedes ao Congresso, não irão prosperar. As duas preveem medidas muito mais duras para o funcionalismo, como forma de ajustar as contas públicas. Elas autorizam, por exemplo, a redução da carga de trabalho e a consequente diminuição dos salários.
As medidas das PECs não teriam validade por apenas 18 meses, mas, no caso da União, até que o governo voltasse a cumprir a chamada “regra de ouro” das finanças públicas e, no caso dos Estados e municípios, até que as despesas correntes ficassem abaixo de 95% das receitas correntes. O prazo de vigência das medidas, portanto, seria o do ajuste das contas públicas. A “regra de ouro” é aquela que proíbe o aumento do endividamento público para o pagamento de despesas correntes.
Ainda em março deste ano, quando a Câmara dos Deputados começou a discutir a chamada “PEC do Orçamento de Guerra”, uma das ideias apresentadas foi a redução da remuneração dos servidores, como medida indispensável para fazer frente às despesas que a União, os Estados e os municípios teriam com o combate à pandemia. Era também considerada importante para igualar a situação dos funcionários públicos com a dos trabalhadores da iniciativa privada, que sofrerão perda de renda durante a crise.
A discussão foi liderada pelo próprio presidente da Câmara, Rodrigo Maia, mas contou sempre com a concordância e o estímulo da área econômica do governo. Maia tinha interlocutor constante na equipe e o texto estava sendo redigido em comum acordo. Uma versão da PEC, divulgada com exclusividade pelo Valor, dizia que as remunerações seriam reduzidas em 30% e esse dispositivo teria validade até 2023.
As corporações de servidores reagiram imediatamente à proposta, antes mesmo dela ser oficialmente formalizada. Representantes de entidades dos magistrados foram ao presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli. Dele, ouviram que as propostas de redução da remuneração dos servidores estavam “paralisadas” e só voltariam à pauta caso houvesse consenso entre os Poderes, como informou o Valor. Os juízes não aceitavam redução de salários.
A equipe de Guedes descobriu também que o próprio presidente Jair Bolsonaro era contrário à proposta. Uma redução de remunerações teria de incluir também os militares. Em entrevista à TV CNN Brasil, no mesmo dia da demissão do ex-ministro da Justiça Sergio Moro, Bolsonaro acusou o presidente da Câmara de querer fazer “um confisco” de 25% nos salários dos servidores, o que ele considerou inadmissível. Com a reação de Bolsonaro, Guedes foi obrigado a recuar e terminou fazendo a proposta de congelar, por dois anos, os salários dos servidores. Com isso, o assunto saiu da “PEC do Orçamento de Guerra”.
O fato é que, no pós-crise, os desafios serão imensos na área fiscal. Com as medidas que estão sendo adotadas, os principais analistas de mercado estimam que o déficit primário da União deverá ficar em torno de R$ 600 bilhões neste ano. Desde 2014, o setor público apresenta déficit primário em suas contas e elas continuarão no vermelho ainda por vários anos.
A dívida pública bruta poderá sair de 76,8% do Produto Interno Bruto (PIB), no ano passado, para perto de 90% do PIB, este ano, de acordo com projeções de analistas do mercado. A Instituição Fiscal Independente (IFI) projeta que ela chegará a 100% do PIB em 2030.
Como fazer um ajuste fiscal que coloque a dívida pública em uma trajetória sustentável e produza superávit primário, sem atingir os servidores? Antes da pandemia, a solução apontada pela equipe econômica era a aprovação das PECs 186 e 188. As duas estão sendo discutidas no Senado. Mas, se mesmo durante a pandemia não está sendo possível exigir um sacrifício dos servidores maior do que não conceder reajuste salarial por um período de tempo, como esperar que o Congresso Nacional aprove um cardápio de medidas mais duras?
O governo terá que promover também uma nova e ampla renegociação das dívidas estaduais e municipais, pois os Estados e municípios, por decisão do STF, não estão pagando seus débitos com a União nem com os bancos públicos, neste momento de calamidade pública. Tudo isso terá que ser objeto de uma difícil negociação, que envolverá, certamente, contrapartidas por parte de Estados e municípios.
O ingrediente que torna ainda mais nebuloso o pós-crise é a autorização dada pelo ministro Celso de Melo, do STF, para a abertura de investigação, por parte do Ministério Público, das acusações feitas pelo ex-ministro Sergio Moro ao presidente da República. O ministro do Supremo Gilmar Mendes estimou que o inquérito poderá durar 90 dias. Até lá, o país viverá a expectativa de saber se o procurador-geral da República, Augusto Aras, terá elementos suficientes para apresentar denúncia contra Bolsonaro.
Para alguns, as acusações de Moro poderão ter o mesmo efeito sobre as reformas econômicas que as acusações de Joesley Batista contra o ex-presidente Michel Temer, em maio de 2017. Naquela época, a reforma da Previdência ficou paralisada. Se o procurador-geral apresentar denúncia contra Bolsonaro, a Câmara dos Deputados terá que decidir se autoriza a abertura do processo. Neste cenário, que coincidirá com o fim do ano, a crise será jogada para 2021, com consequências imprevisíveis para a agenda de reformas.
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