quinta-feira, 30 de abril de 2020

Fernando Schüler* - Estranha contabilidade humana

- Folha de S. Paulo

Brasil precisa fazer qualquer coisa para evitar o drama vivido em hospitais italianos

João Pereira Coutinho fez uma pergunta estranha em seu artigo desta semana: por que salvar um jovem delinquente e abandonar um velho exemplar? A pergunta é provocativa, mas real, nestes tempos de pandemia. O debate é o seguinte: o que fazer quando as UTIs explodem de gente e há mais pessoas em situação crítica do que a capacidade de atendimento?

Foi o dilema vivido pela Itália, semanas atrás. Uma publicação do Colégio Italiano de Anestesia, Analgesia, Reanimação e Terapia Intensiva criou um protocolo para lidar com o tema espinhoso. O conceito é simples: dado que os recursos são escassos, o foco é preservar quem tem “maior probabilidade de sobrevivência”.

Como segunda opção, quem tem mais anos de vida pela frente, de forma a “maximizar benefícios para a maioria”. Logo me perguntei: quantos anos? 50 anos me parece OK; 10 anos soa pouco relevante. Quem vai decidir essas coisas?

O protocolo é, por óbvio, utilitarista. Seus critérios chocam a partir de um olhar menos treinado. Um deles, em particular: estabelecer um limite de idade na entrada na UTI. Pessoas serão excluídas “a priori”. Me incomoda imensamente isso. Imaginei meu velho pai, se vivo fosse, aos 91, dando de cara na porta.

Concorde-se ou não com este ou aquele critério, é melhor ter algum protocolo do que nenhum. O pior cenário é quando escolhas desse tipo são tomadas subjetivamente, no calor da hora.

Há quem vá mais longe nisso tudo. Peter Singer (nosso filósofo utilitarista-chefe) defende que a sociedade como um todo deve pensar não em vidas perdidas, mas em anos de vida perdidos. Ele menciona um estudo mostrando que a Itália perdeu em média “apenas” três anos de vida para cada morte registrada. Singer vai além: sugere que a melhor métrica seria calcular tudo em termos de “bem-estar”.

Certo seria calcular o quanto perdemos, em termos de felicidade agregada, parando a economia por dois ou três meses, vis à vis o benefício de preservar um certo estoque de “anos de vida”, em geral destinados a pessoas muito idosas.

Singer acredita que os economistas facilmente fariam essa conta, colocando um preço na vida humana. Perguntei para um amigo economista, e ele concordou: “fazemos isso toda hora, a começar quando decidimos o orçamento público”.

De minha parte, desconfio de tudo isso. Sigo com o amigo Coutinho: “o problema do utilitarismo é que ele é assaz flexível”. Digo que é preciso propor algum critério mais objetivo para saber quando a contabilidade de vidas humanas é aceitável.

Joshua Greene sugere o seguinte: concordaríamos em sacrificar um e salvar quatro operários distraídos, no famoso dilema do bonde desgovernado. Com uma condição: cada um imaginando a si mesmo dentro do experimento. Seria ilógico não multiplicar por quatro a chance de sobreviver.

O mesmo raciocínio deixa de funcionar quando o contexto é mais aberto. Alguém toparia viver em uma sociedade na qual pudesse ser sacrificado, a qualquer momento, para salvar três ou quatro pessoas?

O utilitarismo é uma ética plausível em situações extremas, quando as opções em jogo são poucas e os critérios amplamente compartilhados. Mas é implausível na grande sociedade, onde a conta de maximização do bem-estar é exageradamente “flexível”, e todos demandamos, com razão, direitos iguais.

O país deveria pensar nisso quando ingressa na fase mais crítica da pandemia. Deveríamos fazer qualquer coisa para evitar que nossos profissionais de saúde tenham que fazer escolhas de vida e de morte entre cidadãos brasileiros, por falta de leitos e respiradores.

Dinheiro não nos falta, visto que nenhum corte na carne vimos até agora do setor público, e nem mesmo os R$ 2 bilhões que nossos políticos reservaram para gastar na campanha eleitoral foram destinados à saúde.

Seria uma estranha forma de contabilidade humana investir em panfletos o necessário para que nenhum de nossos velhos seja retirado de um ventilador, em um hospital qualquer deste país imenso e ingrato.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.

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