- O Estado de S.Paulo
Passada esta pandemia, risco é de que governos voltem a ignorar ameaças biológicas
Esse vírus mostra coisas graves. Mostra, por exemplo, como a construção da sociedade ocidental – e não só a brasileira – é frágil e despreparada.
Para proteção de todos, foram criadas instituições e grandes pactos de defesa mútua, fronteiras rigorosamente demarcadas e fiscalizadas, acordos comerciais para presidir o fluxo de mercadorias e serviços, regras para defesa da propriedade e dos capitais, leis sobre mobilidade de pessoas e veículos. Tudo isso parece abalado por um inimigo invisível.
O mundo se preparou durante mais de 60 anos para enfrentar ataques nucleares, criou abrigos, sistemas antimísseis e avançadas redes de radares e de satélites de rastreamento de informações. Mas nada disso serviu para conter a covid-19.
Desde há muito tempo vêm sendo discutidos os riscos de ataques de vírus e bactérias. Os sistemas de inteligência vêm perscrutando laboratórios ao redor do Planeta que estivessem criando armas biológicas, que a qualquer momento pudessem ser disponibilizadas e manipuladas por Estados ou por organizações extremistas, capazes de causar destruições milhares de vezes maiores do que a produzida por ataques de aviões sequestrados, como no 11 de Setembro. Foram estudadas defesas contra armas químicas, como de gás sarin e de antrax. E, em 2018, os Estados Unidos publicaram um programa estratégico de biodefesa.
No entanto, na hora de proteger os humanos do coronavírus, faltou não só uma estratégia racional de contra-ataque, mas faltaram até mesmo produtos essenciais, destituídos de sofisticação tecnológica, como máscaras de tecido comum, álcool em gel e kits de testes.
Grande número de governos – e não só o brasileiro – reagiu à pandemia de maneira tão caótica que, em vez de defender, vem desorganizando a economia, dizimando empregos e renda. Deve aumentar a pobreza, desestruturar as relações de poder e pode produzir consequências imprevisíveis.
A ordem mundial construída em meados do século 20, que vinha sofrendo ataques por parte de grupos populistas e totalitários, agora corre ainda mais riscos, como se a pandemia apressasse o desmonte. Até mesmo antes do alastramento do vírus, o presidente do país líder do mundo começou o processo de desvalorização das instituições criadas depois da 2.ª Grande Guerra para estabelecer a ordem do mundo a partir de então. Trump ataca a Otan, a ONU, a OMC, a OMS, como se estivesse no lado oposto, no lado do antigo Pacto de Varsóvia ou no dos inimigos da democracia. As instituições da União Europeia vêm recebendo de Trump o tratamento de força inimiga ou de quase isso. O multilateralismo que construiu as alianças do Ocidente desde os anos 40 vai sendo desarticulado por iniciativas unilaterais.
Alguns preferem dizer que nada será como antes, que o mundo tratará de se reorganizar sob novos paradigmas. Pode ser. Mas será que essa covid-19 é um ser tão poderoso, capaz de desmantelar o que grandes guerras não conseguiram ao longo de décadas?
A vacina, que parece próxima, se encarregará de salvar vidas. Mas o que será das instituições e da remontagem do sistema de convivência entre nações depois que se comprovou tanto despreparo, tanta desorganização e tanta incompetência dos líderes mundiais?
A tragédia maior é a de que a humanidade não aprende. O mundo já passou por pandemias até mais letais do que esta parece ser. A peste negra matou cerca de 100 milhões na Europa entre 1347 e 1742. A sífilis matou 50% das pessoas infectadas. A gripe espanhola matou 40 milhões entre 1918 e 1919. E houve o estrago causado pela febre amarela, pelo tifo, pela malária, pelo cholera morbus, pela gripe aviária, pela sars, pelo ebola. São episódios que vêm, vão embora e voltam, com suas mutações, sempre a indicar que o ser humano está mergulhado num caldo de bactérias, vírus e micróbios sempre em desenvolvimento.
Ainda existe quem acredite que essas pandemias são castigo de Deus ou obra do diabo, como certos religiosos pregaram recentemente. Essa abordagem, comum no passado, é hoje residual. Mas, apesar do avanço da ciência, a humanidade continua pouco empenhada em se preparar para ataques desse tipo. E não se trata apenas de doenças infecciosas.
Os sismólogos não se cansam de advertir que grandes metrópoles, como Tóquio e São Francisco, deverão sofrer terremotos arrasadores, os big ones. Só não sabem quando. No entanto, as pessoas continuam vivendo normalmente, como se seu futuro estivesse garantido.
O risco é o de que, uma vez, passada esta pandemia, os governos voltem a ignorar ameaças desse tipo.
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