- O Globo
Suas ligações com criminosos profissionais sempre foram conhecidas
Um gabinete do ódio foi instalado no governo para dar vazão ao maior de todos os sentimentos de um presidente movido pelo desejo permanente de retaliação. Ele se disse perseguido e sempre odiou todos aqueles que identificava como inimigos ou que imaginava um dia poderem se transformar em inimigos. Por isso, destilou sua ira contra políticos de oposição, aliados que não mostravam firmeza, ex-aliados, juízes, desembargadores, ministros da Suprema Corte, jornalistas ou qualquer outro tipo de gente que não pensasse como ele ou que se interpusesse entre ele e seu projeto político.
O gabinete usou todos os instrumentos que conseguiu dispor para construir constrangimentos aos inimigos do chefe. Espionou, divulgou notícias falsas, impediu acesso a documentos oficiais, criou barreiras entre o presidente e a imprensa, proibiu veículos de informação de entrar na sede do governo, mentiu para o Congresso, privilegiou amigos. Suas ligações com criminosos profissionais, milicianos que trabalhavam por dinheiro, sempre foram conhecidas. Recursos do fundo partidário eram usados para pagar por serviços prestados por esses indivíduos, de resto tão inescrupulosos quanto os membros do gabinete do ódio e o próprio presidente da República.
Acossado pelo Congresso que ameaçava instalar um processo de impeachment, o presidente demitiu sumariamente o chefe das investigações sobre crimes cometidos por pessoas do seu círculo mais próximo, inclusive os assessores que dentro do governo davam substância à ira presidencial. A demissão foi o último passo de sua corrida vertiginosa em direção ao abismo. Sabe-se que ele também cometeu crimes de responsabilidade e que não conseguiria escapar do julgamento do Congresso. O presidente deveria renunciar, ou então seria impedido pela vontade da maioria absoluta de deputados e senadores.
Embora se pareça muito com a história em curso de Jair Bolsonaro, esta conta a saga do presidente Richard Nixon no escândalo da invasão da sede do Partido Democrata no edifício Watergate, em 1972. Nixon, que foi um trambiqueiro mas não era bobo, resolveu renunciar ao cargo dois anos depois para não sofrer o impeachment. Foram condenadas e presas 49 pessoas, inclusive membros do gabinete do ódio, como H. R. Haldeman, secretário-geral da Casa Branca, John Mitchell, ministro da Justiça, e os assessores John Ehrlichman e John Dean III. Os cinco bandidos que arrombaram o escritório do partido adversário também foram presos. Dois eram ex-agentes da CIA e do FBI e os outros três eram anticastristas de Miami.
Os assessores do presidente foram presos por instrumentalizar o bando que invadiu o escritório no Watergate, por mentir sobre o episódio, e por sonegar informações. O dinheiro do fundo partidário para a eleição usado na operação agravou o caso.
Nixon, que tentou obstruir a Justiça e também mentiu, só não foi condenado e preso porque, antes de se afastar, negociou com o vice-presidente Gerald Ford um perdão pelos crimes que cometeu. Ford cumpriu a promessa, e o trambiqueiro nunca foi chamado para prestar contas.
Em Watergate, Nixon mandou demitir Archibald Cox, promotor especial designado para investigar o escândalo. No Brasil, Bolsonaro mandou demitir Maurício Valeixo da PF. Nixon só obteve sucesso quando o terceiro da hierarquia da Procuradoria-Geral aceitou encaminhar a encomenda, depois que se demitiram o titular do cargo e seu substituto imediato. No Brasil, o presidente teve que fazer ele mesmo o serviço sujo, uma vez que o ministro Sergio Moro se negou a afastar Valeixo e se demitiu.
Bolsonaro também tem um gabinete do ódio no Palácio, da mesma forma ataca parlamentares, juízes e jornalistas. Mantém laços sólidos com milicianos, chegando a empregar alguns e a homenagear outros. Na campanha, recursos do fundo eleitoral foram usados para financiar a máquina de propaganda de Bolsonaro baseada na distribuição de fake news. São muitas as semelhanças, mas, apesar delas, é claro que Nixon e Bolsonaro não são iguais em tudo. Como Bolsonaro, Nixon também desprezava a democracia, mas pelo menos fingia o contrário.
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