O peso do Brasil na disputa entre os dois gigantes é desprezível e pode sair bem mais machucado que ambos de um conflito que não é seu
O Brasil se aliou aos Estados Unidos para estender sua ofensiva contra a China à Organização Mundial do Comércio, que vive a maior crise desde sua criação, em 1994. Sob o cerco do presidente Donald Trump, a OMC perdeu a capacidade de manter-se como tribunal de disputas comerciais desde que os EUA vetaram um a um os substitutos de seu Órgão de Apelação. Os EUA moveram uma campanha de descrédito da instituição. O Brasil, em declaração conjunta com os EUA, emitiu declaração sobre os danos que as economias que não são de mercado trazem ao sistema de comércio internacional.
A declaração conjunta não menciona a China, nem precisava. “Expressamos nossas sérias preocupações por políticas e práticas que não são orientadas pelo mercado”, que “levam a severo excesso de capacidade, criam condições de competição desleal, impedem o desenvolvimento e uso de tecnologias inovadoras e minam o funcionamento do comércio internacional”. A disputa não é nova, mas o contexto é: a guerra aberta dos Estados Unidos contra a China pela dianteira tecnológica global.
Desde 2001, quando ingressou na OMC, até o fim de 2016, quando terminou a etapa de transição, a China quer ser reconhecida pelos membros da organização como uma economia de mercado. Ela continua longe de sê-lo. A União Europeia não a classifica como tal, os EUA muito menos e o Brasil, depois que o então presidente Lula, em 2004, em viagem a Pequim, chegou a aceitá-la como tal, não falou mais nisso. A China tornou-se a segunda maior economia do mundo, subiu na escala tecnológica com uma economia fechada e estatizada, cujos métodos para absorver tecnologia, alocar subsídios e definir preços provocaram protestos mudos ou sem consequências ao longo dos anos. Mas com Trump, os EUA, o mundo e a China são outros.
A escalada unilateral de Trump não intimida Pequim, que teme, porém, a união das potências desenvolvidas contra ela. A história poderia ser diferente se os EUA se unissem à União Europeia e Japão, também descontentes, e coordenassem ação na OMC para enquadrar a China. Populista ignorante, Trump rechaçou a iniciativa de livre comércio patrocinada pelos EUA sob Obama para concluir um acordo comercial gigante, a Parceria Transpacífico, que tinha o objetivo de domar os chineses por métodos pacíficos, política e comercialmente inteligentes, respeitando as regras do comércio global.
Trump faz seu habitual jogo rude, enquanto Xi Jinping centralizou o controle do Estado, retrocedeu nas reformas pró-mercado e empenhou-se em um jogo geopolítico perigoso, ao eliminar a autonomia relativa, com hora marcada para terminar, de Hong Kong, com uma lei de segurança no velho estilo stalinista.
A ofensiva americana se acelerou nos últimos dias. Trump e o Reino Unido retiraram os benefícios que Hong Kong gozava por seu status especial, enquanto que Boris Johnson pôs fim ao tratado de extradição que tinha com sua ex-colônia. O Reino Unido expulsou a Huawei das redes 5G do país, como Trump fizera antes nos EUA. Até o gaiato TikTok, aplicativo chinês, foi alvo do mal-humorado presidente americano.
O Brasil resolveu se juntar aos EUA neste momento de fúria, sem avaliar serenamente as consequências e possivelmente sem poder levar até o fim lógico a atitude expressa na declaração conjunta. As queixas nela alinhadas são na maior parte justas e comungadas por outros países. Os critérios para aferir se uma economia é de mercado são conhecidos: determinação de preços, custos, investimentos, alocação de capital, trabalho etc têm de ser orientados pelo livre jogo das forças econômicas. Há liberdade de informação para as empresas decidirem seus rumos, sobre os quais o governo deve ter pouca interferência.
Como protagonista de respeito no passado, o Brasil poderia defender as mesmas orientações sem se unir a priori nem com os EUA, que destroem instituições multilaterais, nem tampouco submetendo-se à China, hoje seu maior parceiro comercial. A declaração conjunta pode ser um indicador sobre a decisão politicamente difícil, que o governo Bolsonaro terá de tomar, de abrir o mercado de 5G no Brasil à Huawei, ou rejeitá-la, sob as alegações americanas de falta de segurança.
A diplomacia brasileira não se alinhou automaticamente aos EUA nem durante a ditadura militar, apesar dos laços que os uniam (como o anticomunismo). O peso do Brasil na disputa entre os dois gigantes é desprezível e pode sair bem mais machucado que ambos de um conflito que não é seu.
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