terça-feira, 23 de março de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

Economistas pela saúde – Opinião / O Estado de S. Paulo

A importância da vacinação e dos cuidados com a saúde, diante do agravamento da pandemia, foi tratada como evidente por executivos

Enquanto o presidente cultua a morte, hospitais entram em colapso e enterros congestionam cemitérios, mais de 500 economistas, empresários, ex-ministros, banqueiros, juristas, ex-presidentes do Banco Central, acadêmicos e financistas assinam carta aberta a favor de medidas coordenadas contra a devastação social e econômica provocada pela pandemia. “Estamos no limiar de uma fase explosiva da pandemia e é fundamental que a partir de agora as políticas públicas sejam alicerçadas em dados, informações confiáveis e evidência científica”, afirmam os signatários da carta. “Não há mais tempo para perder em debates estéreis e informações falsas.”

Sem mencionar o nome do presidente Jair Bolsonaro, o documento lembra a importância, para o bem e para o mal, das atitudes dos líderes. “O desdenho à ciência, o apelo a tratamentos sem evidência de eficácia, o estímulo à aglomeração e o flerte com o movimento antivacina caracterizaram a liderança política maior no País”, lembra o documento.

A carta apareceu no domingo à noite nos meios de comunicação profissionais. Antes, o presidente Jair Bolsonaro, falando a cerca de cem pessoas, havia discursado contra novas medidas de restrição a aglomerações e à circulação durante a noite. “Estão esticando a corda e faço qualquer coisa pelo meu povo”, disse o presidente, em mais uma insinuação de ameaça, logo atenuada: “Qualquer coisa dentro da Constituição”. Depois, disse contar com dois exércitos, “o verde-oliva e a população”. Nenhum outro presidente, desde a redemocratização, citou com tanta frequência as Forças Armadas, e nenhum outro as mencionou como se estivessem às suas ordens para impor sua orientação política (ver abaixo o editorial Freando Bolsonaro).

Dois dias antes, a Volkswagen havia anunciado uma pausa de 12 dias na fabricação de veículos no Brasil. O objetivo, segundo a empresa, é preservar a saúde dos empregados e de seus familiares, diante da contaminação crescente e “do aumento da taxa de ocupação dos leitos de UTI nos Estados brasileiros”.

É preciso “colocar mais foco nas vacinas” e pensar mais no coletivo que no individual, com distanciamento social e uso de máscaras, disse o presidente da Volkswagen na América Latina, Pablo Di Si, numa entrevista à GloboNews na sexta-feira à noite.

A importância da vacinação e dos cuidados com a saúde, diante do agravamento da pandemia e da lotação de hospitais, foi tratada como evidente por executivos de vários setores, enquanto o presidente Jair Bolsonaro insistia em combater as ações preventivas de governadores e prefeitos, como se fossem violações do direito de ir e vir ou, ainda, imposições típicas de estado de sítio. São confusões evidentes e perigosas, assim como a insistência na oposição entre saúde e economia.

Muito mais competentes que o presidente Bolsonaro para falar de negócios e crescimento econômico, executivos de alto nível, economistas e financistas têm ressaltado a importância da vacinação e do combate à pandemia para a retomada segura da atividade. “Não é razoável esperar a recuperação da atividade econômica em uma epidemia descontrolada.” É necessário e possível, assinalam, proteger os mais vulneráveis, numa fase de isolamento, por meio de programas como o auxílio emergencial, e apoiar as empresas médias e pequenas.

Quatro providências básicas são destacadas: apressar a vacinação, incentivar o uso de máscaras, implementar medidas de distanciamento social e criar mecanismo de coordenação nacional do combate à pandemia. Cada uma dessas medidas pode envolver detalhes mais ou menos complexos, mas todas são indispensáveis, e a hipótese de um lockdown coordenado nacionalmente é considerada. Fecho da carta: “O Brasil exige respeito”.

O documento contém demonstrações dos enormes ganhos econômicos – e também fiscais – de uma política bem estruturada de enfrentamento da crise sanitária. Não se sabe se o presidente leu ou lerá a carta. O texto é comprido, cheio de letrinhas, e é muito mais fácil berrar ameaças diante de um punhado de apoiadores na frente do Palácio da Alvorada.

Freando Bolsonaro – Opinião / O Estado de S. Paulo

Os que detêm algum poder devem refrear a irresponsabilidade bolsonarista

O presidente Jair Bolsonaro achou que era o caso de comemorar seu aniversário, no domingo passado, comendo bolo com uma centena de devotos na frente do Palácio da Alvorada. Dizem que com a idade vem a sabedoria, mas não há sabedoria nenhuma em promover aglomeração numa festinha quando os brasileiros precisam ficar em casa, longe de familiares e com dificuldade para estudar e trabalhar, diante da escalada mortal da pandemia de covid-19 e do colapso do sistema de saúde.

No convescote, Bolsonaro aproveitou para reiterar seus reptos à democracia. Chamou os governadores de “tiranetes” por ampliarem as medidas de isolamento social. “Estão esticando a corda”, ameaçou o presidente, para em seguida dizer que fará “qualquer coisa pelo meu povo” – e esse “qualquer coisa”, segundo Bolsonaro, “é o que está na nossa Constituição, nossa democracia e nosso direito de ir e vir”.

Traduzindo a glossolalia bolsonarista: o presidente considera que as medidas de distanciamento servem para, em suas palavras, levar o povo à miséria e daí “para o tudo ou nada”, abrindo “o caminho para mergulhar no socialismo”. Esse é o pretexto que Bolsonaro vem invocando nos últimos dias para inventar que a Constituição lhe faculta o poder de decretar, à sua maneira, medidas de exceção, como estado de sítio.

O absurdo da ameaça de estado de sítio é tamanho que levou o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux, a telefonar para Bolsonaro e cobrar explicações sobre suas declarações. Consta que o presidente negou ao ministro ter cogitado decretar medidas de exceção – o que suas próprias palavras desmentem –, mas o simples fato de que o presidente do Supremo tenha pedido esclarecimentos a Bolsonaro mostra que felizmente há limites institucionais para a desfaçatez.

Há limites políticos também. Reportagem do Estado publicada no domingo mostra que lideranças do Centrão começam finalmente a repensar o apoio que dão a Bolsonaro. “Ninguém vai querer se expor em um governo que pode acabar mal por causa da pandemia”, disse o deputado Fausto Pinato (Progressistas-SP).

As cobranças estão ficando cada vez mais explícitas. O Centrão pressionou pela troca no Ministério da Saúde para sinalizar uma mudança radical no modo como o governo administra a crise, mas Bolsonaro optou por um novo ministro que já declarou sua disposição de manter tudo como está. “A situação crítica do Brasil exige a coordenação do presidente da República, ações do Ministério da Saúde e toda colaboração dos demais Poderes”, demandou o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco.

Não deve ser nada fácil mesmo apoiar um presidente que já trocou de ministro da Saúde três vezes desde o início da pandemia, há um ano. Para piorar, a mais recente substituição, anunciada há uma semana, continua sem ser efetivada porque o novo ministro, Marcelo Queiroga, ainda não cumpre requisitos formais para ocupar o cargo, o que levou à esdrúxula situação de um Ministério da Saúde acéfalo, embora tenha dois ministros – um titular e um trainee.

Há ainda outro complicador. A conduta irresponsável de Eduardo Pazuello, o ex-ministro que ainda é ministro, à frente da Saúde durante a pandemia é objeto de inquérito no Supremo. Caso o intendente perca mesmo o status de ministro e, portanto, o direito a foro privilegiado, seu processo deve ser remetido à primeira instância. Especula-se que Bolsonaro pensa até em presentear seu fiel sabujo com um Ministério – algo que a então presidente Dilma Rousseff tentou fazer com Lula da Silva, para dar ao encalacrado chefão petista direito a foro privilegiado, o que escandalizou o País.

É disso que se ocupa diuturnamente o presidente da República: proteger a si mesmo e a seus chegados. Nada além disso – nem os mais de 2 mil mortos por dia, nem a falta de leitos nos hospitais, nem a lentidão da vacinação, nem o empobrecimento acelerado dos brasileiros – parece capaz de comover Bolsonaro.

Assim, todos os que têm algum poder devem exercê-lo para refrear a irresponsabilidade bolsonarista, seja retirando o apoio ao presidente, seja lembrando-lhe que sua vontade não é a lei.

O novo Marco do Gás – Opinião / O Estado de S. Paulo

Nova legislação vai estimular a competição e atrair investimentos privados para o setor

Com a aprovação do novo Marco do Gás, o Congresso deu um passo importante para a modernização da matriz energética do País. O novo arcabouço legal quebra o monopólio da Petrobrás, estimula a competição e deve atrair investimentos privados. Os resultados se traduzirão na expansão da produção do gás natural, na queda de preços e na geração de empregos.

O gás natural é o mais limpo dos combustíveis fósseis e é um energético abundante, barato e versátil, sendo utilizado, sobretudo, pela indústria, que no Brasil responde por 52% do total produzido, e pelo setor de geração elétrica (33%), mas também como combustível automotivo e em residências e estabelecimentos comerciais. 

Apesar dessas qualidades, contudo, o gás natural é subaproveitado no Brasil. Enquanto ele responde por 22% da matriz energética mundial, na matriz brasileira são apenas 13%. Além disso, na comparação com outros países, o preço é elevado. Se nos EUA, por exemplo, ele custa cerca de US$ 3 a cada milhão de BTUs e na Europa, US$ 7, no Brasil o custo varia entre US$ 12 e US$ 14.

O País tem cerca de 30 empresas que produzem gás natural. Mas, na prática, a Petrobrás controla o mercado: ela responde por 77% da produção nacional e por 100% da importação; é sócia de 20 das 27 distribuidoras; e opera boa parte das infraestruturas essenciais.

Em 2009, foi estabelecido o regime de concessão de gasodutos, mas nenhum novo gasoduto foi construído desde então. O novo marco substitui esse regime pelo de autorização, menos burocrático, que possibilitará aos agentes construir, ampliar e operar livremente suas estruturas de transporte, por sua conta e risco. Também assegura o acesso a infraestruturas essenciais, hoje restritas à Petrobrás; impede a relação societária, exercida por monopólio, entre os transportadores e os produtores e comercializadores; e dá segurança jurídica ao mercado, agregando as regras, hoje dispersas, em uma única lei. 

Com mais segurança e condições competitivas, os investimentos privados devem crescer exponencialmente e organicamente, suplementando os investimentos públicos, hoje insuficientes. O Ministério de Minas e Energia calcula que o programa pode destravar R$ 32,8 bilhões em investimentos até 2032, o que pode triplicar a produção de gás. Além da exploração do pré-sal, o País terá melhores condições para importar o gás, vindo por tubos ou navios do resto do mundo. 

O novo arcabouço legal deve aumentar o número de empresas atuantes no País. O governo também pretende incentivar os Estados a privatizarem suas empresas e atualizarem seus marcos regulatórios. A própria Petrobrás será beneficiada, tendo de se tornar mais eficiente para enfrentar a competição.

Com isso, espera-se para os próximos dois ou três anos uma queda expressiva nos preços, possivelmente pela metade. Isso afetará positivamente a cadeia industrial que utiliza o gás, seja para gerar energia, seja como matéria-prima, tornando seus produtos – notadamente o metanol, fertilizantes e o aço – mais baratos e competitivos. Como parte das usinas térmicas utiliza o gás para gerar eletricidade, a queda nos preços também deve levar a uma redução nos preços da energia elétrica, além de impulsionar a construção de novas usinas a gás, em substituição às termoelétricas a diesel e óleo, que, além de produzirem energia mais cara, são mais poluentes. As mudanças também estimularão o emprego do gás como combustível automotivo e, por fim, entregarão o gás encanado mais barato para os usuários domésticos.

Não à toa, o projeto recebeu apoio do governo e das empresas do setor. A nova Lei do Gás se junta a outras reformas que visam a modernizar a infraestrutura e a matriz energética nacional, como o novo Marco do Saneamento e inovações no setor elétrico, petrolífero, ferroviário e na cabotagem. Se essa legislatura os consumar a contento, deixará um importante legado para o País, criando as condições para dinamizar o seu desenvolvimento sustentável. 

A visão estapafúrdia de Bolsonaro sobre a pandemia – Opinião / O Globo

O presidente Jair Bolsonaro convocou para amanhã uma reunião com os líderes dos demais Poderes para discutir ações no combate à pandemia. Ao mesmo tempo, entrou no Supremo contra as medidas de restrição à circulação impostas pelos governadores do Distrito Federal, da Bahia e do Rio Grande do Sul. Não se sabe se foi provocação, já que o STF deliberou no ano passado sobre o tema e conferiu autonomia a governadores e prefeitos, sem tirar responsabilidades da União. Sintomático que a Advocacia-Geral da União (AGU) não tenha subscrito a ação de Bolsonaro.

O presidente do Supremo, ministro Luiz Fux, poderá voltar a explicar no encontro o sentido da decisão, que Bolsonaro teima em não entender. Os representantes do Legislativo, Arthur Lira (PP-AL), da Câmara, e Rodrigo Pacheco (DEM-MG), do Senado, estão divididos: integram a base do governo, mas sofrem pressão até de aliados, inquietos com o descontrole da doença. Não se sabe exatamente o que o presidente da República quer da reunião.

Mais de uma vez, Bolsonaro comparou as medidas de restrição a um “estado de sítio”. Trata-se de uma comparação estapafúrdia. As medidas são temporárias, com pleno respaldo constitucional, baixadas numa situação de emergência sanitária e referendadas pela decisão do próprio STF. A decretação do estado de sítio, em contrapartida, só é autorizada em condições específicas e excepcionalíssimas de instabilidade, como guerras. Ele restringe não apenas a circulação, mas outros direitos fundamentais, permitindo censura, interceptações, busca e apreensão sem autorização judicial e requisição de bens. Por isso mesmo, não depende apenas da vontade do presidente, como Bolsonaro dá a entender, mas de aprovação do Congresso Nacional.

Mesmo que governos estaduais decretem lockdowns, estes seriam medidas administrativas, cuja violação dificilmente estaria sujeita a detenção, outra fantasia bolsonarista. A própria lei da pandemia sancionada por Bolsonaro autoriza os entes federativos a impor restrições à circulação em nome da preservação da saúde pública. É, portanto, absolutamente falaciosa a comparação de Bolsonaro.

O maior de todos os absurdos é o motivo alegado por ele para combater os lockdowns e toques de recolher. Bolsonaro afirma defender, além da pretensa “liberdade”, a manutenção de empregos e da atividade econômica. Só que a oposição entre saúde e economia é um falso dilema. É o que deixa claro, mais uma vez, o manifesto divulgado por mais de 500 economistas em defesa das medidas de restrição.

“A controvérsia em torno dos impactos econômicos do distanciamento social reflete o falso dilema entre salvar vidas e garantir o sustento da população vulnerável”, dizem os economistas. “A experiência mostrou que mesmo países que optaram inicialmente por evitar o lockdown terminaram por adotá-lo, em formas variadas, diante do agravamento da pandemia.” A causa da crise, afirmam, não são as restrições. É o vírus que mata e mina a confiança. “Não é razoável esperar recuperação da atividade econômica numa epidemia descontrolada.”

Bolsonaro precisa deixar de insistir no falso dilema e trabalhar para garantir vacinas, leitos e medicamentos para entubação. O Estado precisa agir para proteger o direito à vida inscrito na Constituição. Sem isso, a economia também entrará em colapso.

América Latina fragmentada é terreno fértil para o coronavírus – Opinião / O Globo

A América Latina reúne 8,5% da população mundial, mas concentra um terço das mortes por Covid-19 no planeta. O desequilíbrio pode ser explicado pela explosão da doença em países como Brasil e México, que contribuem para catapultar os números da região. Mas também pela falta de integração no continente.

Como mostrou reportagem do GLOBO, a fragmentação da América Latina contrasta com as ações da União Africana no combate à pandemia. Em fevereiro, a Equipe de Trabalho Africana para a Aquisição de Vacinas fechou a compra de 300 milhões de doses da russa Sputinik V. Isso depois de garantir 270 milhões de doses de Oxford/AstraZeneca, Pfizer/BioNTech e Janssen (Johnson & Johnson). Países como a África do Sul enfrentam problemas semelhantes aos do Brasil, com a pandemia agravada por uma variante do Sars-CoV-2 altamente transmissível. O desafio da UA é vacinar 1,3 bilhão no continente. Mas pelo menos existe articulação continental para reunir mais força nas negociações.

Na América Latina, a desarticulação no enfrentamento da pandemia está relacionada ao esvaziamento de instituições de integração regional. Professor emérito e ex-presidente da Fiocruz, o sanitarista Paulo Buss afirma que já houve um grupo de trabalho em vigilância epidemiológica cujo objetivo era justamente agilizar as ações do bloco em caso de surgimento de novos surtos ou epidemias. A inciativa foi encerrada.

A verdade é que, na América Latina, impera a política do cada um por si. Brasil e México, não por acaso comandados pelos negacionistas Jair Bolsonaro e Andrés Manuel López Obrador, puxam as estatísticas de mortes, deslocando para o Sul o epicentro da pandemia no mundo. Com exceção do Chile, que já vacinou quase 30% da população, nenhum outro país tem combatido a pandemia com êxito.

No Paraguai, a população foi às ruas protestar contra o desgoverno no enfrentamento da Covid-19. No Uruguai, a estratégia de “liberdade com responsabilidade”, que abdicava de medidas rígidas de restrição, revelou-se um fracasso. Último a começar a vacinação, o país assiste a uma explosão de casos. A Venezuela decretou no domingo 14 dias de confinamento para tentar conter o vírus, em meio a graves crises econômica, política, social e sanitária. Na Argentina, onde cresce o número de infectados e mortos, a vacinação, que poderia abreviar o drama, está enredada num escândalo de fura-filas que derrubou o ministro da Saúde, Ginés González García.

Evidentemente, problemas comuns ao continente demandariam soluções conjuntas. O Brasil, que vive o momento mais crítico da pandemia, teme o risco da falta de oxigênio e de sedativos essenciais para entubação, sem falar na escassez de vacinas. É certo que precisará de ajuda externa, principalmente para conseguir medicamentos em falta nos estados. Recorrer aos vizinhos para compras conjuntas ou mesmo para suprir estoques de emergência — como já vem sendo feito com oxigênio — é uma ideia que já deveria ter sido cogitada.

Vozes do mercado – Opinião / Folha de S. Paulo

Carta de empresários e economistas mostra isolamento crescente de Bolsonaro

É fato bem documentado que os mercados, em especial os financeiros, reagiram favoravelmente à vitória eleitoral de Jair Bolsonaro em 2018, seja por crença na agenda reformista liberal por ele abraçada de última hora, seja por rejeição ao programa do adversário petista, Fernando Haddad.

Claro está também, entretanto, que há muito a confiança porventura depositada em Bolsonaro e em seu ministro da Economia, Paulo Guedes, vem se esvaindo. Os mesmos mercados o demonstram à farta de sua maneira mais eloquente —por meio dos preços.

Para ficar num único exemplo, as cotações da moeda brasileira desabaram, em intensidade não testemunhada nas outras grandes economias ricas e emergentes, ao longo do ano perdido de 2020 e neste trágico início de 2021.

Agora, o desgoverno mortal da pandemia e, por extensão, da economia chegou ao ponto de provocar uma raríssima manifestação aberta de vozes de peso nos mundos empresarial e financeiro contra o presidente da República.

Em carta aberta divulgada no domingo (21), já com mais de 1.500 nomes, entre eles banqueiros, empresários, ex-ministros da Fazenda e ex-presidentes do Banco Central, denunciam sem meias palavras a inépcia, a negligência e a sabotagem às políticas sanitárias por parte da administração federal.

“O desdenho à ciência, o apelo a tratamentos sem evidência de eficácia, o estímulo à aglomeração e o flerte com o movimento antivacina caracterizaram a liderança política maior do país”, diz o texto, sem necessidade de citar nomes.

Apontam-se, ainda mais objetivamente, o vergonhoso atraso da imunização, a ausência de uma coordenação nacional do combate à pandemia, a falta de planejamento do auxílio emergencial e a necessidade de estímulo ao uso de máscaras e ao distanciamento social.

São críticas duríssimas e poderosas, que Bolsonaro não pode atribuir a conspirações da esquerda, da imprensa ou de algum outro de seus fantasmas habituais.

Embora o presidente preserve o apoio de uma parcela minoritária, mas ainda expressiva, do eleitorado, sua patifaria irracional o isola crescentemente dos setores organizados da sociedade. Em tal cenário, mesmo os partidos que a ele vendem seu apoio no Congresso hesitam —ou elevam seu preço.

Está-se diante de um governo que já nomeou seu quarto ministro da Saúde durante a pandemia. E que trata como coisa normal o escolhido não assumir o posto depois de uma semana, enquanto o país conta mais de 2.000 mortes diárias.

Bolsonaro mantém chances de se fortalecer com o avanço da vacinação, a recriação do auxílio emergencial e alguma retomada da economia. Ironicamente, ele próprio é o maior obstáculo a tais melhoras.

Um duelo perigoso – Opinião / Folha de S. Paulo

Política externa dura de Biden é novidade geopolítica; ataque a Putin mira China

Presidentes americanos em começo de mandato são sempre objeto de especulação política por parte de seus rivais geopolíticos.

Joe Biden, 78, que assumiu a vaga de Donald Trump em 20 de janeiro, preferiu adiantar-se. O democrata parece determinado a mostrar ao mundo que não é um senhor idoso com tendência a titubear, conforme a pecha impingida por seu antecessor.

No horizonte do americano está a China, a potência ascendente percebida como desafiante pelo posto de principal país do mundo, ocupado pelos Estados Unidos sem grandes contestações desde o fim da União Soviética, em 1991.

Para mostrar vigor, Biden escolheu um velho vilão, Vladimir Putin. Ainda assim, seu primeiro ato de política externa foi ambíguo.

Ao mesmo tempo em que fez críticas ao envenenamento do opositor russo Alexei Navalni e ações de hackers, ele aceitou as condições de Putin e estendeu o último acordo de controle de armas nucleares.

As gentilezas para a paz pararam por aí. Biden acusou o serviço secreto russo de tentar matar Navalni e determinou novas sanções. Para coroar o movimento, na semana passada Biden concordou com um entrevistador que chamara o presidente russo de assassino.

Líderes na Casa Branca já chamaram a Rússia de Império do Mal, como fez Ronald Reagan sobre a encarnação soviética do país, mas tão agressivo epíteto é novidade.

Putin é conhecido por reagir a pressões de forma incisiva. A tomada da Crimeia em 2014 foi um exemplo de seu modus operandi.

As tensões ora em alta no leste da Ucrânia, controlado em parte por rebeldes pró-Moscou, são um lembrete de que conflitos congelados não ficam assim para sempre.

Putin não tem musculatura econômica para confrontar os EUA, mas administra uma relação próxima com a China e, nunca é bom esquecer, tem um arsenal nuclear equivalente ao de Biden à mão.

Pressionar o russo por excessos autocráticos é obrigação do Ocidente, mas modular o tom aplicado parece igualmente necessário.

Destinatária final de Biden, Pequim tomou nota do recado. O primeiro encontro diplomático dos dois países sob sua gestão, na semana passada, foi marcado por uma inusual altercação pública.

Após as erráticas políticas de Trump, o rumo de Biden até aqui sugere mais atritos pela frente.

Contencioso fiscal amplia insegurança para empresas – Opinião / Valor Econômico

Uma empresa precisa seguir 4.078 normas (45.791 artigos e 106.694 parágrafos) para estar em dia com as suas obrigações fiscais

Pode chegar ao fim em abril o julgamento de um dos processos tributários mais vultuosos, que se arrasta há 23 anos, e envolve a exclusão do ICMS do cálculo do PIS e da Cofins cobrado pela Receita Federal. A discussão é também um dos exemplos cabais da péssima reputação do país na área fiscal, que contribui para engordar a conta trilionária das disputas tributárias e colocar o Brasil em um dos últimos lugares no ranking do Doing Business do Banco Mundial.

O questionamento da aplicação do PIS e Cofins sobre o ICMS chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) em 1998. Seu julgamento foi interrompido no ano seguinte por um pedido de vistas do então ministro Nelson Jobim. O ministro se aposentou em 2006 sem dar retorno sobre o processo que, então, voltou à pauta. Mas, nesse mesmo ano, novo pedido de vistas, desta vez do ministro Gilmar Mendes, que suspendeu a tramitação quando o placar estava favorável à empresa em 6 a 1.

O andamento do processo se acelera, com a chegada à corte de outro recurso extraordinário de mesmo teor, seguido de uma Ação Direta de Constitucionalidade (ADC) movida pelo governo, que defende a incidência dos dois tributos federais sobre o ICMS estadual. O governo obteve, então, liminar que suspendeu a discussão dos questionamentos. Cerca de dez anos depois, em 2017, o STF concluiu a votação em que prevaleceu a tese de que o ICMS não devia compor a base de cálculo do PIS e da Cofins. Mas o julgamento deixou pontos duvidosos e abriu espaço para um embargo declaratório da Fazenda Nacional, que será julgado no próximo mês em definitivo - pelo menos é o que se espera.

O caso chegou a ser chamado de “julgamento da década” em 2017, e agora é o “julgamento do século”. Os valores envolvidos justificam a hipérbole. Em 2017 a União informou na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) que o impacto aos cofres públicos do fim da cobrança seria de R$ 250,3 bilhões, considerando o período entre 2003 e 2014, chegando a R$ 20 bilhões por ano na segunda metade da década de 2010. O que o governo busca agora com o embargo é reduzir a perda.

A questão do PIS e Cofins é apenas uma das que compõe uma respeitável conta de R$ 5,4 trilhões em disputas tributárias pendentes, o equivalente a 75% do PIB, levantada pelo Insper. O cálculo, adverte o Insper, está subestimado porque inclui apenas disputas originadas de cobranças da Receita disponíveis para consulta pública. Foi preciso recorrer à Lei de Acesso à Informação no caso de dados sobre pendências no âmbito estadual e municipal.

Mas é a União a principal responsável pela cobrança de tributos e responde por cerca de 70% do estoque de contencioso de processos em tramitação na Justiça ou na esfera administrativa. Estados e Distrito Federal ficam com quase 22%; e municípios, com 8%.

Os responsáveis pelo levantamento atribuem o volume expressivo de contenciosos à existência de uma legislação tributária prolífica e complexa, que gera disputas nos tribunais. Estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação apurou que uma empresa precisa seguir 4.078 normas - ou 45.791 artigos e 106.694 parágrafos - para estar em dia com as suas obrigações fiscais. Se a empresa atuar em todo o país, sobe a quase 400 mil leis, decretos, medidas provisórias, portarias, instruções normativas e atos declaratórios o número de exigências a serem observadas nos âmbitos estaduais e municipais (Valor, 19/3).

O cipoal de medidas e decisões abrem espaço para perdas para o próprio governo. No caso do ICMS, por exemplo, depois da primeira decisão do STF, algumas empresas conseguiram na Justiça regional federal o direito de usar como crédito fiscal os valores recolhidos de PIS e da Cofins sobre o tributo estadual. Esse seria o principal motivo do salto de 174% no uso de créditos fiscais no ano passado, que chegou a R$ 63,6 bilhões.

Não é surpresa que o Brasil esteja na sexta pior colocação do ranking Doing Business de 2020, com dados de 2019, relativo ao pagamento de impostos, entre 190 países. No ranking geral, o país ocupa o 124º lugar. O Doing Business estima que uma empresa gasta 1,5 mil horas por ano para cumprir suas obrigações fiscais no Brasil. Isso tem alto custo.

A organização sem fins lucrativos Endeavor Brasil calcula que as empresas gastam em média 1,5% do faturamento todo ano para se manterem informadas sobre as regras fiscais. Incluindo a contratação de pessoal, sistemas e equipamentos para acompanhar o assunto, o gasto chega a R$ 65 bilhões, acima do dispendido com pesquisas relacionadas ao negócio em alguns casos.

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