A
importância da vacinação e dos cuidados com a saúde, diante do agravamento da
pandemia, foi tratada como evidente por executivos
Enquanto o presidente cultua a morte, hospitais entram em colapso e enterros congestionam cemitérios, mais de 500 economistas, empresários, ex-ministros, banqueiros, juristas, ex-presidentes do Banco Central, acadêmicos e financistas assinam carta aberta a favor de medidas coordenadas contra a devastação social e econômica provocada pela pandemia. “Estamos no limiar de uma fase explosiva da pandemia e é fundamental que a partir de agora as políticas públicas sejam alicerçadas em dados, informações confiáveis e evidência científica”, afirmam os signatários da carta. “Não há mais tempo para perder em debates estéreis e informações falsas.”
Sem mencionar o nome do presidente Jair Bolsonaro, o documento lembra a importância, para o bem e para o mal, das atitudes dos líderes. “O desdenho à ciência, o apelo a tratamentos sem evidência de eficácia, o estímulo à aglomeração e o flerte com o movimento antivacina caracterizaram a liderança política maior no País”, lembra o documento.
A
carta apareceu no domingo à noite nos meios de comunicação profissionais.
Antes, o presidente Jair Bolsonaro, falando a cerca de cem pessoas, havia
discursado contra novas medidas de restrição a aglomerações e à circulação
durante a noite. “Estão esticando a corda e faço qualquer coisa pelo meu povo”,
disse o presidente, em mais uma insinuação de ameaça, logo atenuada: “Qualquer
coisa dentro da Constituição”. Depois, disse contar com dois exércitos, “o
verde-oliva e a população”. Nenhum outro presidente, desde a redemocratização,
citou com tanta frequência as Forças Armadas, e nenhum outro as mencionou como
se estivessem às suas ordens para impor sua orientação política (ver abaixo o
editorial Freando Bolsonaro).
Dois
dias antes, a Volkswagen havia anunciado uma pausa de 12 dias na fabricação de
veículos no Brasil. O objetivo, segundo a empresa, é preservar a saúde dos
empregados e de seus familiares, diante da contaminação crescente e “do aumento
da taxa de ocupação dos leitos de UTI nos Estados brasileiros”.
É
preciso “colocar mais foco nas vacinas” e pensar mais no coletivo que no
individual, com distanciamento social e uso de máscaras, disse o presidente da
Volkswagen na América Latina, Pablo Di Si, numa entrevista à GloboNews na
sexta-feira à noite.
A
importância da vacinação e dos cuidados com a saúde, diante do agravamento da
pandemia e da lotação de hospitais, foi tratada como evidente por executivos de
vários setores, enquanto o presidente Jair Bolsonaro insistia em combater as
ações preventivas de governadores e prefeitos, como se fossem violações do
direito de ir e vir ou, ainda, imposições típicas de estado de sítio. São
confusões evidentes e perigosas, assim como a insistência na oposição entre
saúde e economia.
Muito
mais competentes que o presidente Bolsonaro para falar de negócios e
crescimento econômico, executivos de alto nível, economistas e financistas têm
ressaltado a importância da vacinação e do combate à pandemia para a retomada
segura da atividade. “Não é razoável esperar a recuperação da atividade
econômica em uma epidemia descontrolada.” É necessário e possível, assinalam,
proteger os mais vulneráveis, numa fase de isolamento, por meio de programas
como o auxílio emergencial, e apoiar as empresas médias e pequenas.
Quatro
providências básicas são destacadas: apressar a vacinação, incentivar o uso de
máscaras, implementar medidas de distanciamento social e criar mecanismo de
coordenação nacional do combate à pandemia. Cada uma dessas medidas pode
envolver detalhes mais ou menos complexos, mas todas são indispensáveis, e a
hipótese de um lockdown coordenado nacionalmente é considerada. Fecho da carta:
“O Brasil exige respeito”.
O
documento contém demonstrações dos enormes ganhos econômicos – e também fiscais
– de uma política bem estruturada de enfrentamento da crise sanitária. Não se
sabe se o presidente leu ou lerá a carta. O texto é comprido, cheio de
letrinhas, e é muito mais fácil berrar ameaças diante de um punhado de
apoiadores na frente do Palácio da Alvorada.
Freando
Bolsonaro – Opinião / O Estado de S. Paulo
Os que detêm algum poder devem refrear a irresponsabilidade bolsonarista
O
presidente Jair Bolsonaro achou que era o caso de comemorar seu aniversário, no
domingo passado, comendo bolo com uma centena de devotos na frente do Palácio
da Alvorada. Dizem que com a idade vem a sabedoria, mas não há sabedoria
nenhuma em promover aglomeração numa festinha quando os brasileiros precisam
ficar em casa, longe de familiares e com dificuldade para estudar e trabalhar,
diante da escalada mortal da pandemia de covid-19 e do colapso do sistema de
saúde.
No
convescote, Bolsonaro aproveitou para reiterar seus reptos à democracia. Chamou
os governadores de “tiranetes” por ampliarem as medidas de isolamento social.
“Estão esticando a corda”, ameaçou o presidente, para em seguida dizer que fará
“qualquer coisa pelo meu povo” – e esse “qualquer coisa”, segundo Bolsonaro, “é
o que está na nossa Constituição, nossa democracia e nosso direito de ir e vir”.
Traduzindo
a glossolalia bolsonarista: o presidente considera que as medidas de
distanciamento servem para, em suas palavras, levar o povo à miséria e daí
“para o tudo ou nada”, abrindo “o caminho para mergulhar no socialismo”. Esse é
o pretexto que Bolsonaro vem invocando nos últimos dias para inventar que a
Constituição lhe faculta o poder de decretar, à sua maneira, medidas de
exceção, como estado de sítio.
O
absurdo da ameaça de estado de sítio é tamanho que levou o presidente do
Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux, a telefonar para Bolsonaro e
cobrar explicações sobre suas declarações. Consta que o presidente negou ao
ministro ter cogitado decretar medidas de exceção – o que suas próprias
palavras desmentem –, mas o simples fato de que o presidente do Supremo tenha
pedido esclarecimentos a Bolsonaro mostra que felizmente há limites
institucionais para a desfaçatez.
Há
limites políticos também. Reportagem do Estado publicada no domingo
mostra que lideranças do Centrão começam finalmente a repensar o apoio que dão
a Bolsonaro. “Ninguém vai querer se expor em um governo que pode acabar mal por
causa da pandemia”, disse o deputado Fausto Pinato (Progressistas-SP).
As
cobranças estão ficando cada vez mais explícitas. O Centrão pressionou pela
troca no Ministério da Saúde para sinalizar uma mudança radical no modo como o
governo administra a crise, mas Bolsonaro optou por um novo ministro que já
declarou sua disposição de manter tudo como está. “A situação crítica do Brasil
exige a coordenação do presidente da República, ações do Ministério da Saúde e
toda colaboração dos demais Poderes”, demandou o presidente do Senado, Rodrigo
Pacheco.
Não
deve ser nada fácil mesmo apoiar um presidente que já trocou de ministro da
Saúde três vezes desde o início da pandemia, há um ano. Para piorar, a mais
recente substituição, anunciada há uma semana, continua sem ser efetivada
porque o novo ministro, Marcelo Queiroga, ainda não cumpre requisitos formais
para ocupar o cargo, o que levou à esdrúxula situação de um Ministério da Saúde
acéfalo, embora tenha dois ministros – um titular e um trainee.
Há
ainda outro complicador. A conduta irresponsável de Eduardo Pazuello, o
ex-ministro que ainda é ministro, à frente da Saúde durante a pandemia é objeto
de inquérito no Supremo. Caso o intendente perca mesmo o status de ministro e,
portanto, o direito a foro privilegiado, seu processo deve ser remetido à
primeira instância. Especula-se que Bolsonaro pensa até em presentear seu fiel
sabujo com um Ministério – algo que a então presidente Dilma Rousseff tentou
fazer com Lula da Silva, para dar ao encalacrado chefão petista direito a foro
privilegiado, o que escandalizou o País.
É
disso que se ocupa diuturnamente o presidente da República: proteger a si mesmo
e a seus chegados. Nada além disso – nem os mais de 2 mil mortos por dia, nem a
falta de leitos nos hospitais, nem a lentidão da vacinação, nem o
empobrecimento acelerado dos brasileiros – parece capaz de comover Bolsonaro.
Assim,
todos os que têm algum poder devem exercê-lo para refrear a irresponsabilidade
bolsonarista, seja retirando o apoio ao presidente, seja lembrando-lhe que sua
vontade não é a lei.
O
novo Marco do Gás – Opinião / O Estado de S. Paulo
Nova
legislação vai estimular a competição e atrair investimentos privados para o
setor
Com a aprovação do novo Marco do Gás, o Congresso deu um passo importante para a modernização da matriz energética do País. O novo arcabouço legal quebra o monopólio da Petrobrás, estimula a competição e deve atrair investimentos privados. Os resultados se traduzirão na expansão da produção do gás natural, na queda de preços e na geração de empregos.
O
gás natural é o mais limpo dos combustíveis fósseis e é um energético
abundante, barato e versátil, sendo utilizado, sobretudo, pela indústria, que
no Brasil responde por 52% do total produzido, e pelo setor de geração elétrica
(33%), mas também como combustível automotivo e em residências e
estabelecimentos comerciais.
Apesar
dessas qualidades, contudo, o gás natural é subaproveitado no Brasil. Enquanto
ele responde por 22% da matriz energética mundial, na matriz brasileira são
apenas 13%. Além disso, na comparação com outros países, o preço é elevado. Se
nos EUA, por exemplo, ele custa cerca de US$ 3 a cada milhão de BTUs e na
Europa, US$ 7, no Brasil o custo varia entre US$ 12 e US$ 14.
O
País tem cerca de 30 empresas que produzem gás natural. Mas, na prática, a
Petrobrás controla o mercado: ela responde por 77% da produção nacional e por
100% da importação; é sócia de 20 das 27 distribuidoras; e opera boa parte das
infraestruturas essenciais.
Em
2009, foi estabelecido o regime de concessão de gasodutos, mas nenhum novo
gasoduto foi construído desde então. O novo marco substitui esse regime pelo de
autorização, menos burocrático, que possibilitará aos agentes construir,
ampliar e operar livremente suas estruturas de transporte, por sua conta e
risco. Também assegura o acesso a infraestruturas essenciais, hoje restritas à
Petrobrás; impede a relação societária, exercida por monopólio, entre os transportadores
e os produtores e comercializadores; e dá segurança jurídica ao mercado,
agregando as regras, hoje dispersas, em uma única lei.
Com
mais segurança e condições competitivas, os investimentos privados devem
crescer exponencialmente e organicamente, suplementando os investimentos
públicos, hoje insuficientes. O Ministério de Minas e Energia calcula que o
programa pode destravar R$ 32,8 bilhões em investimentos até 2032, o que pode
triplicar a produção de gás. Além da exploração do pré-sal, o País terá
melhores condições para importar o gás, vindo por tubos ou navios do resto do
mundo.
O
novo arcabouço legal deve aumentar o número de empresas atuantes no País. O
governo também pretende incentivar os Estados a privatizarem suas empresas e
atualizarem seus marcos regulatórios. A própria Petrobrás será beneficiada,
tendo de se tornar mais eficiente para enfrentar a competição.
Com
isso, espera-se para os próximos dois ou três anos uma queda expressiva nos
preços, possivelmente pela metade. Isso afetará positivamente a cadeia
industrial que utiliza o gás, seja para gerar energia, seja como matéria-prima,
tornando seus produtos – notadamente o metanol, fertilizantes e o aço – mais
baratos e competitivos. Como parte das usinas térmicas utiliza o gás para gerar
eletricidade, a queda nos preços também deve levar a uma redução nos preços da
energia elétrica, além de impulsionar a construção de novas usinas a gás, em
substituição às termoelétricas a diesel e óleo, que, além de produzirem energia
mais cara, são mais poluentes. As mudanças também estimularão o emprego do gás
como combustível automotivo e, por fim, entregarão o gás encanado mais barato
para os usuários domésticos.
Não
à toa, o projeto recebeu apoio do governo e das empresas do setor. A nova Lei do
Gás se junta a outras reformas que visam a modernizar a infraestrutura e a
matriz energética nacional, como o novo Marco do Saneamento e inovações no
setor elétrico, petrolífero, ferroviário e na cabotagem. Se essa legislatura os
consumar a contento, deixará um importante legado para o País, criando as
condições para dinamizar o seu desenvolvimento sustentável.
A visão estapafúrdia de Bolsonaro sobre a pandemia – Opinião / O Globo
O presidente Jair Bolsonaro convocou para amanhã uma reunião com os líderes dos demais Poderes para discutir ações no combate à pandemia. Ao mesmo tempo, entrou no Supremo contra as medidas de restrição à circulação impostas pelos governadores do Distrito Federal, da Bahia e do Rio Grande do Sul. Não se sabe se foi provocação, já que o STF deliberou no ano passado sobre o tema e conferiu autonomia a governadores e prefeitos, sem tirar responsabilidades da União. Sintomático que a Advocacia-Geral da União (AGU) não tenha subscrito a ação de Bolsonaro.
O
presidente do Supremo, ministro Luiz Fux, poderá voltar a explicar no encontro
o sentido da decisão, que Bolsonaro teima em não entender. Os representantes do
Legislativo, Arthur Lira (PP-AL), da Câmara, e Rodrigo Pacheco (DEM-MG), do
Senado, estão divididos: integram a base do governo, mas sofrem pressão até de
aliados, inquietos com o descontrole da doença. Não se sabe exatamente o que o
presidente da República quer da reunião.
Mais
de uma vez, Bolsonaro comparou as medidas de restrição a um “estado de sítio”.
Trata-se de uma comparação estapafúrdia. As medidas são temporárias, com pleno
respaldo constitucional, baixadas numa situação de emergência sanitária e
referendadas pela decisão do próprio STF. A decretação do estado de sítio, em
contrapartida, só é autorizada em condições específicas e excepcionalíssimas de
instabilidade, como guerras. Ele restringe não apenas a circulação, mas outros
direitos fundamentais, permitindo censura, interceptações, busca e apreensão
sem autorização judicial e requisição de bens. Por isso mesmo, não depende
apenas da vontade do presidente, como Bolsonaro dá a entender, mas de aprovação
do Congresso Nacional.
Mesmo
que governos estaduais decretem lockdowns, estes seriam medidas
administrativas, cuja violação dificilmente estaria sujeita a detenção, outra
fantasia bolsonarista. A própria lei da pandemia sancionada por Bolsonaro
autoriza os entes federativos a impor restrições à circulação em nome da
preservação da saúde pública. É, portanto, absolutamente falaciosa a comparação
de Bolsonaro.
O
maior de todos os absurdos é o motivo alegado por ele para combater os
lockdowns e toques de recolher. Bolsonaro afirma defender, além da pretensa
“liberdade”, a manutenção de empregos e da atividade econômica. Só que a
oposição entre saúde e economia é um falso dilema. É o que deixa claro, mais
uma vez, o manifesto divulgado por mais de 500 economistas em defesa das
medidas de restrição.
“A
controvérsia em torno dos impactos econômicos do distanciamento social reflete
o falso dilema entre salvar vidas e garantir o sustento da população
vulnerável”, dizem os economistas. “A experiência mostrou que mesmo países que
optaram inicialmente por evitar o lockdown terminaram por adotá-lo, em formas
variadas, diante do agravamento da pandemia.” A causa da crise, afirmam, não
são as restrições. É o vírus que mata e mina a confiança. “Não é razoável
esperar recuperação da atividade econômica numa epidemia descontrolada.”
Bolsonaro
precisa deixar de insistir no falso dilema e trabalhar para garantir vacinas,
leitos e medicamentos para entubação. O Estado precisa agir para proteger o
direito à vida inscrito na Constituição. Sem isso, a economia também entrará em
colapso.
América Latina fragmentada é terreno fértil para o coronavírus – Opinião / O Globo
A América Latina reúne 8,5% da população mundial, mas concentra um terço das mortes por Covid-19 no planeta. O desequilíbrio pode ser explicado pela explosão da doença em países como Brasil e México, que contribuem para catapultar os números da região. Mas também pela falta de integração no continente.
Como
mostrou reportagem do GLOBO, a fragmentação da América Latina contrasta com as
ações da União Africana no combate à pandemia. Em fevereiro, a Equipe de
Trabalho Africana para a Aquisição de Vacinas fechou a compra de 300 milhões de
doses da russa Sputinik V. Isso depois de garantir 270 milhões de doses de
Oxford/AstraZeneca, Pfizer/BioNTech e Janssen (Johnson & Johnson). Países
como a África do Sul enfrentam problemas semelhantes aos do Brasil, com a pandemia
agravada por uma variante do Sars-CoV-2 altamente transmissível. O desafio da
UA é vacinar 1,3 bilhão no continente. Mas pelo menos existe articulação
continental para reunir mais força nas negociações.
Na
América Latina, a desarticulação no enfrentamento da pandemia está relacionada
ao esvaziamento de instituições de integração regional. Professor emérito e
ex-presidente da Fiocruz, o sanitarista Paulo Buss afirma que já houve um grupo
de trabalho em vigilância epidemiológica cujo objetivo era justamente agilizar
as ações do bloco em caso de surgimento de novos surtos ou epidemias. A
inciativa foi encerrada.
A
verdade é que, na América Latina, impera a política do cada um por si. Brasil e
México, não por acaso comandados pelos negacionistas Jair Bolsonaro e Andrés
Manuel López Obrador, puxam as estatísticas de mortes, deslocando para o Sul o
epicentro da pandemia no mundo. Com exceção do Chile, que já vacinou quase 30%
da população, nenhum outro país tem combatido a pandemia com êxito.
No
Paraguai, a população foi às ruas protestar contra o desgoverno no
enfrentamento da Covid-19. No Uruguai, a estratégia de “liberdade com
responsabilidade”, que abdicava de medidas rígidas de restrição, revelou-se um
fracasso. Último a começar a vacinação, o país assiste a uma explosão de casos.
A Venezuela decretou no domingo 14 dias de confinamento para tentar conter o
vírus, em meio a graves crises econômica, política, social e sanitária. Na
Argentina, onde cresce o número de infectados e mortos, a vacinação, que poderia
abreviar o drama, está enredada num escândalo de fura-filas que derrubou o
ministro da Saúde, Ginés González García.
Evidentemente,
problemas comuns ao continente demandariam soluções conjuntas. O Brasil, que
vive o momento mais crítico da pandemia, teme o risco da falta de oxigênio e de
sedativos essenciais para entubação, sem falar na escassez de vacinas. É certo
que precisará de ajuda externa, principalmente para conseguir medicamentos em
falta nos estados. Recorrer aos vizinhos para compras conjuntas ou mesmo para
suprir estoques de emergência — como já vem sendo feito com oxigênio — é uma
ideia que já deveria ter sido cogitada.
Vozes do mercado – Opinião / Folha de S. Paulo
Carta
de empresários e economistas mostra isolamento crescente de Bolsonaro
É
fato bem documentado que os mercados, em especial os financeiros, reagiram
favoravelmente à vitória eleitoral de Jair Bolsonaro em 2018, seja por crença
na agenda reformista liberal por ele abraçada de última hora, seja por rejeição
ao programa do adversário petista, Fernando Haddad.
Claro
está também, entretanto, que há muito a confiança porventura depositada em
Bolsonaro e em seu ministro da Economia, Paulo Guedes, vem se esvaindo. Os
mesmos mercados o demonstram à farta de sua maneira mais eloquente —por meio
dos preços.
Para
ficar num único exemplo, as cotações da moeda brasileira desabaram, em
intensidade não testemunhada nas outras grandes economias ricas e emergentes,
ao longo do ano perdido de 2020 e neste trágico início de 2021.
Agora,
o desgoverno mortal da pandemia e, por extensão, da economia chegou ao ponto de
provocar uma raríssima manifestação
aberta de vozes de peso nos mundos empresarial e financeiro contra o
presidente da República.
Em
carta aberta divulgada no domingo (21), já com
mais de 1.500 nomes, entre eles banqueiros, empresários, ex-ministros da
Fazenda e ex-presidentes do Banco Central, denunciam sem meias palavras a
inépcia, a negligência e a sabotagem às políticas sanitárias por parte da
administração federal.
“O
desdenho à ciência, o apelo a tratamentos sem evidência de eficácia, o estímulo
à aglomeração e o flerte com o movimento antivacina caracterizaram a liderança
política maior do país”, diz o texto, sem necessidade de citar nomes.
Apontam-se,
ainda mais objetivamente, o vergonhoso atraso da imunização, a ausência de uma
coordenação nacional do combate à pandemia, a falta de planejamento do auxílio
emergencial e a necessidade de estímulo ao uso de máscaras e ao distanciamento
social.
São
críticas duríssimas e poderosas, que Bolsonaro não pode atribuir a conspirações
da esquerda, da imprensa ou de algum outro de seus fantasmas habituais.
Embora
o presidente preserve o apoio de uma parcela minoritária, mas ainda expressiva,
do eleitorado, sua patifaria irracional o isola crescentemente dos setores
organizados da sociedade. Em tal cenário, mesmo os partidos que a ele vendem
seu apoio no Congresso hesitam —ou elevam seu preço.
Está-se
diante de um governo que já nomeou seu quarto ministro da Saúde durante a
pandemia. E que trata como coisa normal o escolhido não assumir o posto depois
de uma semana, enquanto o país conta mais de 2.000 mortes diárias.
Bolsonaro
mantém chances de se fortalecer com o avanço da vacinação, a recriação do
auxílio emergencial e alguma retomada da economia. Ironicamente, ele próprio é
o maior obstáculo a tais melhoras.
Um duelo perigoso – Opinião / Folha de S. Paulo
Política
externa dura de Biden é novidade geopolítica; ataque a Putin mira China
Presidentes
americanos em começo de mandato são sempre objeto de especulação política por
parte de seus rivais geopolíticos.
Joe
Biden, 78, que assumiu a vaga de Donald Trump em 20 de janeiro, preferiu
adiantar-se. O democrata parece determinado a mostrar ao mundo que não é um
senhor idoso com tendência a titubear, conforme a pecha impingida por seu
antecessor.
No
horizonte do americano está a China, a potência ascendente percebida como
desafiante pelo posto de principal país do mundo, ocupado pelos Estados Unidos
sem grandes contestações desde o fim da União Soviética, em 1991.
Para
mostrar vigor, Biden escolheu um
velho vilão, Vladimir Putin. Ainda assim, seu primeiro ato de política
externa foi ambíguo.
Ao
mesmo tempo em que fez críticas ao envenenamento do opositor russo Alexei
Navalni e ações de hackers, ele aceitou as condições de Putin e estendeu o
último acordo de controle de armas nucleares.
As
gentilezas para a paz pararam por aí. Biden acusou o serviço secreto russo de
tentar matar Navalni e determinou novas sanções. Para coroar o movimento, na
semana passada Biden concordou com um entrevistador que chamara o presidente
russo de assassino.
Líderes
na Casa Branca já chamaram a Rússia de Império do Mal, como fez Ronald Reagan sobre
a encarnação soviética do país, mas tão agressivo epíteto é novidade.
Putin
é conhecido por reagir a pressões de forma incisiva. A tomada da Crimeia em
2014 foi um exemplo de seu modus operandi.
As
tensões ora em alta no leste da Ucrânia, controlado em parte por rebeldes
pró-Moscou, são um lembrete de que conflitos congelados não ficam assim para
sempre.
Putin
não tem musculatura econômica para confrontar os EUA, mas administra uma
relação próxima com a China e, nunca é bom esquecer, tem um arsenal nuclear
equivalente ao de Biden à mão.
Pressionar
o russo por excessos autocráticos é obrigação do Ocidente, mas modular o tom
aplicado parece igualmente necessário.
Destinatária
final de Biden, Pequim tomou nota do recado. O primeiro encontro diplomático
dos dois países sob sua gestão, na semana passada, foi marcado por uma inusual
altercação pública.
Após
as erráticas políticas de Trump, o rumo de Biden até aqui sugere mais atritos
pela frente.
Contencioso fiscal amplia insegurança para empresas – Opinião / Valor Econômico
Uma
empresa precisa seguir 4.078 normas (45.791 artigos e 106.694 parágrafos) para
estar em dia com as suas obrigações fiscais
Pode
chegar ao fim em abril o julgamento de um dos processos tributários mais
vultuosos, que se arrasta há 23 anos, e envolve a exclusão do ICMS do cálculo
do PIS e da Cofins cobrado pela Receita Federal. A discussão é também um dos
exemplos cabais da péssima reputação do país na área fiscal, que contribui para
engordar a conta trilionária das disputas tributárias e colocar o Brasil em um
dos últimos lugares no ranking do Doing Business do Banco Mundial.
O questionamento da aplicação do PIS e Cofins sobre o ICMS chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) em 1998. Seu julgamento foi interrompido no ano seguinte por um pedido de vistas do então ministro Nelson Jobim. O ministro se aposentou em 2006 sem dar retorno sobre o processo que, então, voltou à pauta. Mas, nesse mesmo ano, novo pedido de vistas, desta vez do ministro Gilmar Mendes, que suspendeu a tramitação quando o placar estava favorável à empresa em 6 a 1.
O andamento do processo se acelera, com a chegada à corte de outro recurso extraordinário de mesmo teor, seguido de uma Ação Direta de Constitucionalidade (ADC) movida pelo governo, que defende a incidência dos dois tributos federais sobre o ICMS estadual. O governo obteve, então, liminar que suspendeu a discussão dos questionamentos. Cerca de dez anos depois, em 2017, o STF concluiu a votação em que prevaleceu a tese de que o ICMS não devia compor a base de cálculo do PIS e da Cofins. Mas o julgamento deixou pontos duvidosos e abriu espaço para um embargo declaratório da Fazenda Nacional, que será julgado no próximo mês em definitivo - pelo menos é o que se espera.
O
caso chegou a ser chamado de “julgamento da década” em 2017, e agora é o
“julgamento do século”. Os valores envolvidos justificam a hipérbole. Em 2017 a
União informou na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) que o impacto aos
cofres públicos do fim da cobrança seria de R$ 250,3 bilhões, considerando o
período entre 2003 e 2014, chegando a R$ 20 bilhões por ano na segunda metade
da década de 2010. O que o governo busca agora com o embargo é reduzir a perda.
A
questão do PIS e Cofins é apenas uma das que compõe uma respeitável conta de R$
5,4 trilhões em disputas tributárias pendentes, o equivalente a 75% do PIB,
levantada pelo Insper. O cálculo, adverte o Insper, está subestimado porque
inclui apenas disputas originadas de cobranças da Receita disponíveis para consulta
pública. Foi preciso recorrer à Lei de Acesso à Informação no caso de dados
sobre pendências no âmbito estadual e municipal.
Mas
é a União a principal responsável pela cobrança de tributos e responde por
cerca de 70% do estoque de contencioso de processos em tramitação na Justiça ou
na esfera administrativa. Estados e Distrito Federal ficam com quase 22%; e
municípios, com 8%.
Os
responsáveis pelo levantamento atribuem o volume expressivo de contenciosos à
existência de uma legislação tributária prolífica e complexa, que gera disputas
nos tribunais. Estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação
apurou que uma empresa precisa seguir 4.078 normas - ou 45.791 artigos e
106.694 parágrafos - para estar em dia com as suas obrigações fiscais. Se a
empresa atuar em todo o país, sobe a quase 400 mil leis, decretos, medidas
provisórias, portarias, instruções normativas e atos declaratórios o número de
exigências a serem observadas nos âmbitos estaduais e municipais (Valor, 19/3).
O
cipoal de medidas e decisões abrem espaço para perdas para o próprio governo.
No caso do ICMS, por exemplo, depois da primeira decisão do STF, algumas
empresas conseguiram na Justiça regional federal o direito de usar como crédito
fiscal os valores recolhidos de PIS e da Cofins sobre o tributo estadual. Esse
seria o principal motivo do salto de 174% no uso de créditos fiscais no ano
passado, que chegou a R$ 63,6 bilhões.
Não
é surpresa que o Brasil esteja na sexta pior colocação do ranking Doing
Business de 2020, com dados de 2019, relativo ao pagamento de impostos, entre
190 países. No ranking geral, o país ocupa o 124º lugar. O Doing Business
estima que uma empresa gasta 1,5 mil horas por ano para cumprir suas obrigações
fiscais no Brasil. Isso tem alto custo.
A organização sem fins lucrativos Endeavor Brasil calcula que as empresas gastam em média 1,5% do faturamento todo ano para se manterem informadas sobre as regras fiscais. Incluindo a contratação de pessoal, sistemas e equipamentos para acompanhar o assunto, o gasto chega a R$ 65 bilhões, acima do dispendido com pesquisas relacionadas ao negócio em alguns casos.
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