A contrapartida de direitos são os tributos, que aparecem fartamente na Constituição
O
argumento é recorrente. Os brasileiros mais pobres já possuem benefícios
demais: a própria Constituição citaria “direitos” dezenas e dezenas de vezes,
mas “deveres” somente em um punhado de ocasiões. Com tantos direitos sem
deveres correspondentes, o arranjo seria insustentável. O argumento é
falacioso: a contrapartida de direitos são os tributos, eles são fartamente
previstos na Constituição e incidem mais justamente sobre os mais pobres – aqueles
que teriam direitos demais.
Comecemos
com um Ctrl+F na Constituição. Tributos e seus tipos – impostos e contribuições
– aparecem mais de 300 vezes. São eles os espelhos dos direitos, e não um termo
genérico como “dever”. O direito à saúde é concretizado com contribuições
sociais. O direito à educação é efetivado com impostos. E assim vai.
No Brasil, muitos desses tributos, ou deveres, recaem sobre quem ganha menos, que paga a conta indiretamente quando compra um produto. Na verdade, os mais pobres pagam mais em tributos indiretos do que os mais ricos, quando considerado o peso dos tributos em proporção à renda de cada grupo.
Essa
distribuição é muito diferente da de vários países desenvolvidos, que exigem
mais esses deveres dos mais ricos. Mesmo uma reforma da tributação sobre o
consumo, como a PEC 45, pode atenuar a situação, ao distribuir melhor a carga
entre o que é consumido pelos mais bem posicionados na distribuição de renda e
os mais vulneráveis. Estudo da economista Débora Freire conclui que essa reforma tributária traria “ganhos de bem-estar” para as
famílias mais pobres, pelo seu efeito nos preços.
Para
que as elites tenham mais deveres, são importantes também medidas relacionadas
à tributação da renda. Embora a Constituição demande tratamento igual entre os
cidadãos em geral, e progressividade no Imposto de
Renda em particular, o fato é que ele é regressivo para rendas
mais altas: quanto mais se ganha, menos se paga (a alíquota efetiva chega a 5%
para o grupo que ganha mais de R$ 300 mil). Isso porque para este dever muitos
pagam 0% em relação a certas rendas, isentas legalmente de pagar o IR – em
provocação à Constituição.
Temos
também muitos problemas com isenções ou outros auxílios a empresários de
setores específicos da economia. Estes ficam dispensados de seus deveres
constitucionais parcial ou totalmente, por um prazo definido ou
indefinidamente. São os chamados gastos tributários (renúncias, benefícios
fiscais): um montante que eleva a nossa dívida com pouca clareza sobre suas
vantagens em termos de políticas públicas.
Um
passo, ainda que tímido, foi dado semana passada para que os deveres sejam
distribuídos de forma mais igualitária. Com a nova Emenda Constitucional n.º
109, decorrente da PEC
emergencial, uma nova lei complementar passa a ser exigida
regulamentando a criação desses benefícios fiscais, regras para avaliação e um
plano para sua redução. É importante que a regulamentação do tema enquadre
mecanismos que dão menos deveres a grupos mais prósperos, como isenções no IR
ou tributação do patrimônio favorecida, abaixo dos limites da Constituição.
É
verdade que em nosso pacto social é possível identificar direitos em excesso,
mas a evidência é de que isso não ocorre entre os mais pobres. Se consideramos
deveres os tributos, consideremos agora o gasto público como uma aproximação de
direitos. Os dados apontam que transferências do governo são regressivas quando
dividimos a população – por exemplo – em cinco grandes grupos de renda: isto é,
quanto menos pobre cada quinto da população, mais recursos recebem.
De
tal forma que para o quinto mais rico pesam em sua renda os recursos recebidos
do governo quase o mesmo tanto que para os mais pobres. Como mostra estudo da
antiga Secretaria de Acompanhamento Econômico, esse padrão é muito divergente
do de países da OCDE, em que o gasto é muito mais direcionado aos mais
vulneráveis.
Como
evidencia o debate do auxílio emergencial, uma larga parcela da população está, na
verdade, com poucos direitos. Centenas de economistas lançaram no último fim de
semana uma carta que chamou atenção pelas cobranças quanto à pandemia, mas que
também defende de forma contundente uma reforma no sistema de proteção social –
exatamente pela cobertura insuficiente.
Muito
mudou no País desde que Roberto
Campos fez a crítica que seria popularizada nas décadas
seguintes – de que a Constituição prevê direitos demais e deveres de menos. À
época, ainda não haviam sido montados os mecanismos legais que hoje distorcem
tanto nosso sistema tributário em benefício de quem está no topo. Que as
mudanças que esperam nosso País nos próximos anos se orientem por uma verdade
inconveniente: são os mais ricos que têm deveres de menos.
*Doutor em economia
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