Beatriz
Peres / Folha de S. Paulo
SÃO PAULO - O ex-presidente francês François Hollande, 66, que comandou o país entre 2012 e 2017, considera palpáveis os danos causados pelo populismo que ascendeu em diferentes partes do mundo.
"A
eleição de Jair Bolsonaro resultou em destruições importantes da floresta
amazônica, em um declínio da democracia e das liberdades e em políticas muito
duras com os mais pobres e muito complacentes com os mais ricos", diz o socialista.
"Sem esquecer a gestão da crise sanitária, que, tanto no Brasil quanto nos
EUA —quando Donald Trump estava no poder—, fez vítimas demais, por falta de
medidas restritivas."
Em
entrevista à Folha,
por email, Hollande defende uma reação em bloco, como afirma ter acontecido com
a candidatura do democrata Joe Biden na vitória sobre Trump. "Foi por
pouco, e isso só foi possível porque o conjunto dos democratas, para além de
suas diferenças, juntaram suas forças."
Depois
da condenação
do ex-presidente Nicolas Sarkozy, o senhor criticou o que chamou de
“ataques repetidos contra a Justiça”. Por que considerou necessário defender a
Justiça francesa neste momento?
A
separação dos Poderes é o fundamento da democracia. Na França, a Justiça é
independente do Executivo. Os magistrados, os juízes e os procuradores conduzem
suas investigações e proferem suas sentenças sem intervenção nenhuma do poder
político. As decisões podem ser contestadas por todas as vias de recurso, o que
Nicolas Sarkozy já fez em seguida à condenação. Por isso não aceitei os ataques
vindos da direita e dos apoiadores do ex-presidente que visam desacreditar a
autoridade judiciária.
No
Brasil, a Justiça também está sendo criticada devido ao processo
contra o ex-presidente Lula. É preciso defender a Justiça também no
Brasil?
A Justiça brasileira vai estabelecer ela mesma a verdade e poderá um dia verificar se as acusações contra o ex-presidente Lula tinham fundamento. Mas já parece claro que tudo foi feito no plano político para impedir Lula de se candidatar na última eleição presidencial. Foi isso que justificou minha tomada de posição, com outros chefes de Estado e de governo, desde 2018, para que Lula pudesse, livre, ser candidato à eleição presidencial. Hoje é um novo momento que se abre, e fico feliz de ver Lula recuperar plenamente seu espaço na vida política brasileira.
Nos
EUA, a
eleição de Joe Biden freou a onda populista de Donald Trump. Mas os
movimentos populistas de extrema direita e de ultradireita estão espalhados
pela Europa e também pelo Brasil. Qual é o papel da esquerda neste
momento?
Nós
já podemos facilmente constatar os danos causados pelos populistas. A eleição
de Jair Bolsonaro resultou em destruições importantes da floresta amazônica, em
um declínio da democracia e das liberdades e em políticas muito duras com os
mais pobres e muito complacentes com os mais ricos. Sem esquecer a gestão da
crise sanitária, que, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos —quando Donald
Trump estava no poder—, fez vítimas demais, por falta de medidas restritivas.
A
esquerda nos Estados Unidos –porque é assim que podemos considerar os
democratas americanos– foi capaz de se unir em torno de Joe Biden, cujo passado
e experiência eram testemunhas de seu compromisso e despertaram confiança. Foi
assim que Trump pôde ser derrotado. Foi por pouco, e isso só foi possível
porque o conjunto dos democratas, para além de suas diferenças, juntaram suas
forças. O papel da esquerda, portanto, é fazer de tudo para impedir que os
populistas cheguem ao poder e, quando eles chegam, de retirá-los
democraticamente propondo ao povo uma solução crível.
Na
França, o Partido Socialista está programando um congresso de “refundação”,
para definir um novo ciclo e renomear o partido. Do que se trata esse movimento
de refundação?
Em
um mundo que evolui rapidamente e diante de desafios enormes como as
desigualdades, a democracia e o aquecimento climático, cada geração deve
assumir suas responsabilidades. Os partidos progressistas precisam se renovar,
se refundar e se repensar, tanto do ponto de vista de sua organização como de
seu projeto. Mas sem nunca se esquecer de sua história e sem perder os valores
sobre os quais foram fundados. É essa a tarefa atual dos socialistas franceses.
O
senhor tem discutido a renovação da esquerda com o ex-presidente Lula?
Sim,
nós concordamos em trocar experiências, em defender as mesmas posições em nível
internacional e em construir, em nossos respectivos países, as forças políticas
capazes de encarnar a alternância. Trabalharemos com todos que quiserem se
juntar a nós para devolver a esperança à política. Nós compartilhamos os
valores da liberdade, da democracia e da justiça social.
A
França ainda vive o luto de atentados terroristas recentes, incluindo a decapitação
do professor Samuel Paty, e os deputados aprovaram um projeto de lei contra
os separatismos, que será examinado pelo Senado. As
discussões do chamado “islamoesquerdismo” eclipsam o problema
real?
A
França ama as polêmicas. Algumas podem ser frutíferas, outras ocultam os
problemas reais. Sejamos lúcidos, existem fenômenos de radicalização, de
divisão e mesmo de separatismo. E há até teorias que os justificam. Eles precisam
ser discutidos e combatidos. Mas não vamos acreditar que eles sejam
majoritários na esquerda, pelo contrário. É uma fração muito pequena que mantém
esses movimentos para viver em protesto, em exclusão e na recusa de suas
responsabilidades. Eu sou socialista e, portanto, universalista e não me
satisfaço com os combates parciais. Tudo deve convergir para uma mudança global
da sociedade. Quanto ao terrorismo, ele tenta nos assustar e nos dividir, não
podemos ceder a ele.
O
senhor concorda com a gestão
do presidente Emmanuel Macron durante a pandemia?
A
gestão da pandemia é uma das crises mais difíceis que se poderia conceber, já
que o vírus é resistente, a vacinação demora a produzir seus efeitos e uma
parcela da população continua vulnerável. A gestão do governo pode ter parecido
às vezes hesitante ou contraditória, mas foi assim em todos os países. Ao menos
eu reconheço o mérito de Emmanuel Macron, ao contrário de Jair Bolsonaro, de
ter admitido que o vírus era perigoso, que poderia matar e que era preciso
tomar medidas restritivas, especialmente o confinamento.
O
senhor se arrepende de não ter disputado as últimas eleições
presidenciais?
Eu
deveria ter demorado mais para anunciar minha escolha, talvez um pouco mais
tarde tivesse sido diferente. Eu me arrependo de não ter podido perseguir por
mais tempo a política de redução das desigualdades, a priorização da educação e
da inserção dos jovens, assim como a luta por uma ecologia social.
O
senhor acredita ter um papel na eleição de 2022? Qual?
Eu
não sou mais dirigente do Partido Socialista. Tenho orgulho do que fiz pelo meu
país, ainda que reconheça determinadas falhas, mas meu papel é contribuir para
o debate de ideias, fazer propostas, expressar minhas convicções quando os
pontos essenciais estão em questão e transmitir minha experiência às novas
gerações.
*François Hollande, 66, Formado pela École des Hautes Études Commerciales de Paris e pelo Institut d'Études Politiques de Paris (Sciences Po), entrou para o Partido Socialista em 1979. Foi deputado pelo departamento de Corrèze e prefeito da capital, Tulle. Foi o sétimo presidente da quinta República Francesa.
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