- Correio Braziliense
A dimensão da tragédia que atravessamos decorre da simultaneidade do coronavírus com o desgoverno. Outros países passam por dificuldades, mas nenhum enfrenta ao mesmo tempo o alto número de mortes, a falta de leitos em UTI, de oxigênio e de vacinas. Nenhum tem um desgoverno incapaz de organizar a logística de atendimento hospitalar, nenhum tem o desgoverno de um presidente incentivando pessoas a se aglomerarem, sem máscaras, a acreditarem em remédios sem comprovação científica. Há um vírus aliado ao desgoverno.
Em
plena pandemia, o Ministério da Saúde teve à frente um militar seguindo ordens
de seu comandante, independentemente de bases científicas. A administração
profissional do Ministério foi tomada de assalto e dominada pelo caos. Porque
não basta dar ordem, é preciso identificar propósitos e seguir uma lógica.
Agora, já há um novo ministro, sem que o anterior tenha saído, o que é mais uma
prova de desgoverno.
Há também o desgoverno na política externa, que relegou o Brasil ao posto de pária internacional. Nosso desgoverno pratica a antidiplomacia ao nos confrontar com a China, Venezuela, Estados Unidos, Argentina, França. O Ministério das Relações Exteriores faz o oposto do que sempre caracterizou nossa política externa, que já ocupou papel de destaque.
O
Ministério da Educação tem passado a maior parte destes dois últimos anos
desgovernando nossa, já pobre, educação. Nada trouxe de novo no plano federal,
nem tenta coordenar os sistemas municipais e estaduais. As universidades estão abandonadas
ou sendo confrontadas. Num momento em que o ensino à distância tem sido a única
solução para manter as aulas em escolas públicas e particulares, respeitando o
distanciamento social, não há ações coordenadas para investir em modernização
do ensino.
O
ministério que deveria zelar por nossos recursos naturais insufla ocupações de
florestas por madeireiros e garimpeiros, ignora ou tolera incêndios. Nossos indígenas
estão desprotegidos sob ações ou omissões do desgoverno genocida.
A
pandemia trouxe desafios inesperados para a economia. Mesmo assim, sentimos o desgoverno
também nesta área. Não se vê estratégia em execução, salvo os auxílios
emergenciais que têm sido promovidos sobretudo pelo esforço do Congresso.
Podemos dizer que, apesar do desgoverno, o parlamento tem feito seu papel.
Com
a aproximação das eleições presidenciais, sentimos também que há um desgoverno
nas oposições. O momento seria para a construção de uma base sólida que
oferecesse alternativa viável para enfrentar e vencer o atual desgoverno. Em
vez disso, vemos candidatos disputando entre si a chance de estar no segundo
turno, em 2022, com o desgoverno.
O
desgoverno da oposição não permite aos líderes e aos partidos entenderem que, depois
dos conflitos, discordâncias e acusações no primeiro turno, dificilmente o
vencedor contará com o apoio seguro de candidatos e eleitores que perderão. A
chance é grande de repetirmos o que ocorreu em 2018, quando o acirramento do
antagonismo no primeiro turno provocou grande número de votos em branco, nulos
ou abstenções.
A
única forma de evitar esse resultado, mais uma vez, seria construir uma base
eleitoral unida já no primeiro turno, reunindo todos os partidos e líderes que
se opõem ao desgoverno atual. As discordâncias entre as propostas desses partidos
devem ser discutidas a partir de 2023, olhando para 2026. Além de todos os
partidos, como nos tempos decisivos nas lutas pela democracia, o candidato
escolhido deverá ter apoio também de entidades representativas da sociedade.
Para vencer e barrar tentações golpistas.
Esta
unidade pode ser construída desde já, sobre cinco compromissos: a) enfrentar o
coronavírus e as sequelas sociais, econômicas e educacionais nos próximos anos;
b) recuperar as conquistas democráticas praticadas desde 1985; c) barrar a
destruição de nossas reservas naturais, especialmente da Amazônia; d) recuperar
nossa presença internacional; e) assumir que o presidente eleito não disputará
reeleição em 2026.
Com
estes cinco compromissos, deve-se aceitar o debate para escolher o candidato
com maior chance de vencer as eleições, acima de qualquer preconceito, levando adiante
um governo de transição, pós-desgoverno atual.
Em
momentos extremos, é preciso gestos extremos. E em um tempo de tanta desunião,
o gesto extremo seria a união de todos os líderes divergentes em relação ao
futuro, mas com um mínimo de identidade e sentimento para salvar o Brasil neste
momento.
*Cristovam Buarque - Professor Emérito da Universidade de Brasília (UnB)
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