Só
Deus — nem uma eleição, nem um impeachment — o tira do trono; brada aquele que
afirmou ter provas (jamais apresentadas) de que o pleito de 2018 fora fraudado.
Pode
piorar.
Não se chega a um presidente abertamente golpista — um investidor no caos, que tanto mais prosperará quanto mais forem as instabilidades e os conflitos — sem um longo percurso de permissões à violência. Pode piorar. (Enquanto isso, Fux — num gesto de bravura institucional — telefonará para saber se o discurso golpista pode se materializar em golpe; de resto, como se a dilapidação autocrática da democracia liberal precisasse de tanques nas ruas.)
Pode
piorar. O encadeamento do esquema é lógico. Se a mentalidade dominante é a
autoritária, influentes serão — mais oferecidos estarão — os instrumentos
arbitrários. E então temos um presidente que, citando estado de sítio
diariamente, apropria-se do Exército, forja governadores como tiranos e prega o
armamento da população — instigando a desobediência civil — como maneira de resistir
aos usurpadores imaginários da liberdade.
Se
a mentalidade prevalecente é a discricionária, mais tentados seremos às
soluções exorbitantes. Encaixa-se nessa concepção prepotente —em que a boa
causa legitima se diluírem as fronteiras entre acusação e juízo — a forma como
o lavajatismo compreende a Justiça. E, se nos sentimos à vontade ante o uso de
ferramentas abusivas — justiceiras — contra adversários, porque, afinal, são
adversários (a linguagem vigente os torna inimigos), então teremos entrado na
cancha em que gente como Bolsonaro, o que faz “qualquer coisa pelo povo”, joga
em casa.
O
bolsonarismo — fenômeno reacionário de natureza populista-autocrática — será o
dono da bola se as regras forem as autorizadas pela Lei de Segurança Nacional.
A LSN é um paraíso para a equiparação entre a pessoa do governante e a
representação do Estado; do que se desdobra a fé antidemocrática, exercida por
alpinistas como o ministro da Justiça, de que a proteção à honra de Bolsonaro
equivalha à guarda do próprio Estado brasileiro. E daí — numa corrida por quem
pode mais — não haverá limites.
Decorrem
dessa distorção o inquérito intimidador contra Felipe Neto (referiu-se ao
presidente como genocida) e a ação contra um tocantinense que veiculou outdoor
em que chamava Bolsonaro de pequi roído; para ficar apenas em dois casos
recentes. Ambos atos do mais óbvio exercício da liberdade de expressão. Atos
cujos conteúdos, porém, podem, sim, ofender a honra; ofensas contra as quais
existe o Código Civil. Ponto final. Tudo o mais sendo tentativa — pelo Estado —
de amedrontar. Ou alguma dessas manifestações — por agressiva que seja — tem
potencial atentatório contra a segurança do presidente? Ou alguma dessas
expressões investe contra a ordem política republicana? Não.
As
falas do deputado Daniel Silveira, sim. Enquadram-se na LSN. Falas de alguém
com mandato, agente que se exprime desde dentro da democracia representativa,
que atacou um Poder da República. Mas é muito perigoso que a captura do crime
de Silveira e os gatilhos para a prisão do parlamentar (de flagrante muito
duvidoso, depois improvisada numa espécie de flagrante permanente) baseiem-se
numa lei que, como próprio a mecanismos autoritários, molda-se a qualquer
ímpeto ressentido e vingador, cujo alcance se estica para chegar a qualquer um,
a depender do mendonça de turno na esquina.
Está
aberta a pista — e já bem movimentada, com convites a toda sorte de aventureiro
— para o baile em que Bolsonaro e seus silveiras são os melhores e mais
experientes dançarinos. E a culpa aqui — pelo salão encerado e escancarado — é
compartilhada entre Congresso e Supremo.
Da
parte do Parlamento, porque ainda não jogou no lixo a LSN, em cujo espaço
deveria erguer uma robusta legislação de defesa do estado democrático de
direito — um marco destinado a tipificar os crimes contra a democracia e
esclarecer os modos como um senador ou deputado, sem mais meios de deturpar a
liberdade de se expressar, podem ser presos, inclusive provisoriamente, e
cassados; com o que, ademais, se valorizaria o espírito republicano da
imunidade parlamentar.
Da
parte do STF, porque tem origem no tribunal o revigoramento da LSN, a
excrecência que ancora o inquérito dito das Fake News, aquela doença
totalitária, um enclave censor — já censurou uma revista — baixado de ofício e
sem objeto investigado definido, ali onde tudo cabe, por meio do que o Supremo
se impõe ao mesmo tempo como vítima, investigador, promotor e julgador.
Um péssimo exemplo. Que atiça qualquer empoderadinho com distintivo. Chama os revanchistas e oportunistas a expor os dentes. E desbasta o terreno em que a barbárie fareja as carnes. Aí está. Vai piorar.
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