Valor Econômico
Ciência política deveria iluminar
estratégia do governo
Na sua longa caminhada rumo à vitória em
2018, não foram poucas as vezes em que o então deputado Jair Bolsonaro
vilipendiou o Bolsa Família, acusando-o de ser eleitoreiro e de desincentivar o
trabalho. Houve ocasião em que o chamou pejorativamente de “Bolsa Farelo”, e em
outra insinuou, contra todas as evidências empíricas, que o programa estimulava
mulheres pobres a terem mais filhos. Uma vez no poder, Bolsonaro não apenas
manteve o benefício, como busca ampliá-lo, rebatizando-o de Auxílio Brasil.
Na sua longa caminhada rumo à vitória em 2002, Lula era um árduo defensor da instituição do imposto sobre grandes fortunas. Durante os oito anos em que ocupou o Palácio do Planalto, porém, Lula nunca se esforçou verdadeiramente por cumprir sua promessa. E mais do que isso: atual líder nas pesquisas de intenção de voto, o petista recentemente declarou que é contra taxar a riqueza acumulada pelos multimilionários.
As contradições entre o discurso e a
prática desses dois importantes líderes políticos ilustra bem uma
característica marcante da história brasileira desde a redemocratização. Tendo
à disposição as duas principais armas para combater a pobreza e a desigualdade
- a elevação de gastos e transferências de renda, de um lado, e a instituição
de um sistema tributário progressivo, de outro -, nossa classe política,
independentemente da posição ideológica, opta sistematicamente pelo caminho
mais fácil do aumento da despesa pública.
Numa tese de doutorado que acaba de ser
defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da
Universidade de São Paulo (USP), Eduardo Lazzari se vale de farta documentação
histórica, dados legislativos e evidências internacionais para explicar mais
este paradoxo brasileiro: por que motivo, num país com tamanha desigualdade
social, a defesa por um sistema tributário mais justo não gera incentivos
político-eleitorais para a sua implementação?
A hipótese levantada por Lazzari baseia-se
nas distinções entre a distribuição e a tangibilidade de custos e benefícios
envolvidas nas opções por buscar a redistribuição de renda via gastos ou por
meio da tributação.
Dos primeiros programas de distribuição de
leite e de vale-gás no governo Sarney até o auxílio emergencial de Bolsonaro,
passando pela instituição do SUS, a universalização do acesso à educação
básica, o Bolsa Família e os aumentos reais no salário mínimo, todos os
presidentes brasileiros tentaram deixar a sua marca com políticas públicas
centradas na despesa. Embora com impactos distintos, maior ou pior focalização,
a intenção sempre foi extrair retornos eleitorais com os gastos sociais.
A explicação para isso está no fato de que
políticas públicas que ampliam gastos sociais ou transferências de renda têm
benefícios palpáveis para os cidadãos mais pobres, enquanto seu financiamento é
diluído por impostos pagos por toda a sociedade - o aumento das despesas
sociais, portanto, tem benefícios tangíveis e concentrados para os eleitores, e
seus custos são difusos.
No caso da tributação progressiva ocorre
justamente o contrário: aumentar as alíquotas do imposto de renda ou
reinstituir a tributação de dividendos tem benefícios que não são percebidos
pelos mais pobres, mas sua instituição pesa imediatamente no bolso dos mais
ricos - que se mobilizam, então, para barrar a proposta. Com custos
concentrados e benefícios difusos, a classe política não tem interesse em
enfrentar interesses poderosos em prol de um sistema tributário que cobre mais
de quem tem mais capacidade contributiva. Em outras palavras, propostas de
reforma tributária progressiva não dão voto.
Entre os vários exercícios realizados para
comprovar a sua tese, Lazzari utilizou um algoritmo assistido para analisar
quase 5 mil projetos de lei de natureza tributária apresentadas no Congresso
entre 1989 e 2020. A conclusão é retumbante: do total de proposições, apenas
5,1% foram classificadas como tendo o objetivo de reduzir a regressividade no
sistema tributário brasileiro.
Classificando a vinculação partidária dos
autores das proposições, o cientista político identificou que parlamentares da
esquerda tendem a ser mais ativos em apresentar propostas de aumentar os
tributos sobre os mais ricos - porém, essa vantagem desapareceu quando o PT
esteve no governo; uma evidência de que, uma vez no poder, ninguém quer
confusão com os donos do capital.
O arcabouço teórico e as evidências
empíricas apresentadas na tese de Eduardo Lazzari demonstram como economistas
do governo precisam estar mais atentos aos diagnósticos e prescrições vindas da
ciência política. Tome-se o caso da reforma tributária atualmente em discussão
no Congresso.
A PEC nº 45/2019 - concebida no Centro de
Cidadania Fiscal, dirigido por Bernard Appy - não tinha como propósito
principal combater a regressividade no nosso sistema tributário. Ao perseguir
uma maior simplificação do sistema e diluindo seu custo de implementação ao
longo de vários anos, a proposta enfraquecia o poder de veto dos eventuais
perdedores em caso de mudança. Ao defender que questões de desigualdade
deveriam ser tratadas via programas de transferência de renda, as chances de
aprovação aumentaram.
Mas eis que surgiu Paulo Guedes com sua
ideia de retomar a tributação sobre dividendos e o fim da isenção dos juros
sobre capital próprio. Embora a iniciativa seja meritória, o governo não possui
base política no Congresso para superar a resistência dos poderosos grupos
econômicos que se beneficiam desse privilégio tributário. Aplicando aqui a tese
de Lazzari, ao introduzir no debate o conflito distributivo, Guedes mina as
perspectivas de aprovação da reforma.
Há algumas semanas fez sucesso nas redes
sociais um meme em que um meia habilidoso faz uma jogada individual brilhante e
deixa o atacante cara a cara com o goleiro. Seria um gol de placa, se o
centroavante não isolasse a bola grosseiramente por cima da meta. Na legenda,
dizia-se: “Bernard Appy e Paulo Guedes”.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
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