Folha de S. Paulo
A prática de discordar se tornou
insuportável nas discussões políticas do país
"Diafonofobia" é palavra que não
existe, mas merecia. Dá para encontrar uma cepa clássica, no grego, claro. De
"diaphonia", desacordo,
discordância, e "phóbos", medo, mas torcido na acepção clínica
corrente que o relaciona à morbidade, o medo patológico.
O contrário de "diaphonia" é
"simphonia", o concertamento, a convergência, mas ela entra aqui só para
dar uma nota contrastante nessa melodia triste do horror ao desacordo, do
desconforto patológico com a discordância, da fobia
da divergência, da "diafonofobia", em suma.
Se a expressão não existe, o fenômeno que
lhe constituiria a referência é bem conhecido nosso. A divergência —mesmo a
divergência baseada em argumentos e que estaria legitimamente coberta pela
liberdade de expressão— tornou-se algo insuportável em certos ambientes
sociais.
Principalmente quando se trata de questões políticas —mas o que não é considerado política ou devidamente politizável hoje em dia?
O investimento em política hoje supera
aplicações em quaisquer outros ativos disponíveis, com a vantagem de que é um
empenho ao mesmo tempo libidinal e existencial.
Com isso, quando eu aposto a minha
existência e, aparentemente, a minha própria felicidade em posições políticas,
implico-me nas oscilações do mercado de opinião política, nas decisões sobre
políticas públicas e na disputa política institucional, como se tudo,
literalmente, valesse a vida.
A nossa e a dos bastardos, degenerados,
estúpidos e malvados que não estão do nosso lado e que, portanto, no jogo de
soma zero em que nos encontramos, buscam ativamente a nossa desgraça e a nossa
dor pelo simples fato de existirem.
Almas sensíveis e superinvestidas no
mercado político sofrem mais. A diafonia lhes é barulho doloroso, um desafio constante
à segurança das convicções, uma infame provocação à sua identidade. Prefeririam
a sinfonia, o coral dos que pensam, sentem e creem igual.
Principalmente os neoparticipantes
da política. Sim, pois a década de 2010 representou uma espetacular virada
no pêndulo da participação e do interesse em política, que havia chegado ao
máximo em apatia e desinteresse no fim do milênio, mas que, por alguma razão
ainda incerta, despejou na política, de repente, dezenas de milhões de novos
emocionados participantes.
Milhões de pessoas que começaram a se
implicar em política sem os anos de experiência necessários de atrito de ideias
dos velhos militantes, sem formação, e sem compreender que o nome do jogo é
mesmo divergência com civilidade.
Estão literalmente adoecendo de política,
quer dizer, com a "diafonia" política. Ensinaram-lhe que a vida
pessoal é política e que quanto mais um sujeito "participa da luta"
melhor cidadão ele se torna.
Não lhe ensinaram, contudo, a lidar com o
atrito de pensamento, com as opiniões ao mesmo tempo desagradáveis e legítimas,
com o fato de que alguém pode ser moralmente superior e ainda assim minoritário,
e que essa é uma das circunstâncias mais banais da vida democrática.
Com tanta libido investida, à primeira
divergência constatada, instala-se uma crise —que nunca mais será apenas
política, mas também psíquica e moral. Verificado um desacordo permanente, vez
que na democracia se discorda, e muito, instaura-se a fobia da divergência, a
"diafonofobia".
O acometido pela fobia não pode admitir a
sua própria condição. Afinal, ele próprio vive de enfrentar opiniões, condutas
e atitudes que condena, de arrastá-las à esfera pública digital, de montar
julgamentos sumários, de expedir sentenças e implementar penas que recaem sobre
os malditos cristofóbicos, homofóbicos, transfóbicos, misóginos, comunistas que
forem detectados no seu turno de guarda.
De fato, é o primeiro a comparecer nos
rodapés dos jornais digitais ou comentários em plataformas para insultar e
provar que quem pensa diferente é imoral, ignorante ou estúpido. Ele pode
divergir, dele é que não se pode discordar.
A angústia espiritual que leva à "diafonofobia"
é provocada pela incapacidade de considerar a legitimidade e a honestidade de
quem discorda de nós. De entender que divergir, mesmo em questões sensíveis,
não necessariamente é feito para ameaçar a nossa existência, mas é decorrência
natural da adoção de diferentes perspectivas e valores ou da resistência
intelectual e moral a aderir ao nosso ponto de vista.
A "diafonofobia" é, no fundo,
intolerância à alteridade, aquele osso duro de roer em que o ego costuma
quebrar todos os seus dentes.
*Professor titular da UFBA (Universidade
Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada".
2 comentários:
Discordo.
Ego sum qui sum
Saudade da rivalidade entre coxinha e mortadela,bons tempos.
Postar um comentário