segunda-feira, 17 de junho de 2024

Lygia Maria - Congresso abjeto

Folha de S. Paulo

Em vez de resolver gargalos no acesso ao aborto legal, Legislativo usa a vida de meninas e mulheres estupradas para barganha política

"Fui estuprada, estou grávida, mas vou esperar alguns meses para fazer um aborto". Para os parlamentares brasileiros é assim que uma mulher que engravidou por violência sexual pensa. Só isso explica a crueldade do projeto de lei que pune o aborto após 22 semanas de gestação como homicídio —mesmo nos casos autorizados, como estupro.

Mas outro fator esclarece melhor o disparate. O presidente da Câmara e aliados resolveram usar a vida de meninas e mulheres como moeda de troca contra o governo, que, por sua vez, lavou as mãos. A insensatez, portanto, ganha ares abjetos.

Código Penal permite o aborto no caso de estupro e não estipula limite temporal para a gestação. O Estado, assim, não pode obrigar a mulher a ter um filho do seu agressor —um princípio humanista básico.

Se os deputados são contra a interrupção da gravidez após 22 semanas, devem examinar por que ela ocorre. Afinal, nenhuma mulher quer realizar um procedimento arriscado, quando poderia facilmente ter acesso a um mais simples e seguro.

O problema é que não é fácil. Há preconceito e excesso de burocracia; a rede de saúde é desigual e restrita. O Brasil tem 5.570 municípios e, em 2021, os 290 estabelecimentos que realizavam aborto legal estavam localizados em apenas 3,6% deles, de cordo com estudo da UFSC.

Nem mesmo crianças violentadas têm pleno acesso ao serviço. Levantamento da Folha mostrou que, em 2021, das 1.556 internações relacionadas a abortos na faixa etária entre 10 e 14 anos, só 131 (8%) ocorreram por causas autorizadas, como estupro —o restante foram abortos espontâneos ou tentativas malsucedidas de interrupção da gestação.

O fato de os deputados não se preocuparem em resolver os gargalos que dificultam e protelam o acesso ao aborto legal no país só comprova que a urgência, sem debate, dada ao projeto de lei não passa de politicagem rasteira e mesquinha. Para o Congresso Nacional, o direito de meninas e mulheres estupradas serve apenas como poder barganha.

 

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