Valor Econômico
Eleição no CFM põe em xeque a ideologização da entidade que fixa os princípios do exercício da medicina no país
Vinte e cinco anos no poder e contando. É este recorde de fazer inveja ao chavismo que o atual comando do Conselho Federal de Medicina pode ampliar na eleição que acontece nestas terça e quarta feiras. Não se trata de uma disputa classista. É uma autarquia federal, sustentada por contribuição obrigatória para o registro profissional de cerca de 600 mil médicos no Brasil. Sua atuação normatiza os princípios que regem a atividade e tem o poder de cassar o registro de médicos que os atropelem. O que está em jogo é a credibilidade da medicina no país e a vulnerabilidade da população a uma atividade essencial que costeia o alambrado da ciência para abraçar a ideologia.
Não se trata de percepção exagerada sobre o
poder de estruturas herdeiras do corporativismo varguista. A extrema-direita
tem se valido da ocupação de todas elas para se enraizar no cotidiano da
população sob o beneplácito de médicos, engenheiros ou advogados para quem
política é assunto de políticos. Alienam-se sobre decisões que afetam sua vida
e daqueles a quem servem - ou deveriam servir.
Foram os representantes do CFM que
respaldaram a recomendação da cloroquina pelo Ministério da Saúde e não
endossaram a obrigatoriedade da vacina. Passada a tragédia dos 700 mil mortos,
dobraram a aposta. No dia 27 de julho de 2022, o ex-presidente Jair Bolsonaro
foi à sede da entidade em Brasília, exaltou o tratamento precoce e a
“autonomia” médica em prescrevê-lo, além de vangloriar-se por estar vivo a
despeito de não ter tomado vacina. “Muito nos honra vossa presença em nossa
sede”, reagiu José Hiran Gallo, no CFM desde 1999, e candidato à reeleição por
Rondônia, único Estado da disputa com uma única chapa.
O CFM ainda limitou o uso do canabidiol à
epilepsia sob a alegação de que falta comprovação científica para outros usos.
A Organização Mundial de Saúde reconhece eficácia em dor crônica, doença de
Parkinson, esclerose múltipla e redução dos efeitos colaterais da
quimioterapia. E, finalmente, o conselho soltou resolução, em abril deste ano,
que veta o aborto, inclusive nos três casos permitidos pela lei (estupro, risco
de vida da mãe e anencefalia), para gestações acima de 22 semanas. Suspensa
pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, a resolução
inspirou projeto de lei que acabou retirado de pauta pelo risco de prisão de
crianças e adolescentes.
Essas diretrizes não comandaram apenas o
Conselho Federal de Medicina como também suas 27 regionais. A primeira reação
ao conjunto desta obra veio no ano passado quando, na eleição para os conselhos
regionais, o do Distrito Federal elegeu uma chapa de oposição, a única da
federação.
Além das crendices, o apego ao bolso também
ajuda a explicar a longevidade de seus mandatos. A contribuição dos médicos (R$
816 por ano), além dos valores pagos pelos consultórios (cerca de R$ 1 mil) e
estabelecimentos de saúde, garantem uma receita anual de R$ 286 milhões. Graças
aos jetons pelas reuniões e às diárias por viagens, há conselheiros com renda
de até R$ 60 mil. Tudo isso sem precisar tocar num estetoscópio.
Valem-se, ainda, da atuação no conselho para
justificar faltas. Um ex-presidente do CFM foi acusado pelo Ministério Público
do Mato Grosso do Sul de receber indevidamente R$ 72 mil como pagamento por 873
plantões não realizados em hospitais da rede municipal de Campo Grande. Atual
tesoureiro da entidade, é candidato à reeleição no Estado.
É natural, portanto, que a disputa esteja
encarniçada. Até a Polícia Federal foi chamada. Uma das quatro chapas que
disputam em São Paulo enviou um “santinho” para o SMS dos filiados com a
mensagem “vote na única chapa que não faz o L” tendo como pano de fundo o
logotipo do conselho. Como, para votar, é preciso atualizar o cadastro com
e-mail e celular no CFM, boletins de ocorrência registraram violação de sigilo.
Num outro santinho, o mesmo candidato vale-se
de três cabos eleitorais, Luciano Hang, o “véio da Havan”, o deputado federal
Nikolas Ferreira (PL-MG) e o ex-ministro da Saúde da gestão Jair Bolsonaro
Marcelo Queiroga. “Não me acusem de ser de direita, isso é propaganda
gratuita”, diz o pretendente ao conselho no vídeo-santinho. A confiança no
extremismo deste colégio eleitoral é tamanha que, no Rio, uma chapa tomou o
vereador Carlos Bolsonaro (PL) como cabo eleitoral e outra, o senador Flávio
Bolsonaro (PL-RJ).
Um total de 73 chapas disputam 27 vagas no
Conselho - outras duas são indicadas pelas associações médicas. O presidente
sai das alianças formadas entre esses 29 titulares. As contas mais realistas
dão conta de que apenas quatro Estados têm chances reais de eleger um nome não
alinhado ao bolsonarismo (SP, BA, PE e DF).
Um dos candidatos do campo não bolsonarista
diz que, se eleito, vai preferir atuar nas comissões a disputar cargo na
diretoria. Entre as pautas que os une está a limitação na abertura de
faculdades de medicina, hoje cerca de 400, sem hospitais-escola. O resultado é
que as vagas de residência só atendem a um terço dos formandos.
Nem na ditadura, o CFM esteve tão
ideologizado, dizem os integrantes mais longevos deste colégio eleitoral. A
estratégia dos candidatos mais realistas é a busca de consensos, ainda que
periféricos, para comer o extremismo pelas beiradas até que seja possível
devolver a regulamentação da medicina para o que sugerem as evidências.
2 comentários:
Uma vergonheira!
A medicina brasileira já não é grande coisa... Ideologizada e mal conduzida pelo CFM, dominado por famigerados médicos bolsonaristas, só pode piorar ainda mais!
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