terça-feira, 6 de agosto de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

STF acerta ao condenar PEC Kamikaze

O Globo

Apesar do atraso, Corte decide que uso da máquina pública por Bolsonaro em ano eleitoral foi ilegal

Por 8 votos a 2, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que a Emenda Constitucional 123/2022 violou o princípio da igualdade de oportunidades entre os candidatos. Com a intenção de melhorar suas chances de reeleição, Jair Bolsonaro usou o aumento do barril de petróleo causado pela guerra entre a Rússia e a Ucrânia como subterfúgio para declarar estado de emergência. Dessa forma, ampliou a abrangência e os valores de programas sociais e interveio nos preços de combustíveis. Tudo isso às vésperas das eleições presidenciais. Logo que a ideia veio à tona, a proposta foi apelidada de Kamikaze, por ser um ataque suicida contra as contas públicas. A decisão do STF pela inconstitucionalidade de partes da emenda comprova que a democracia também foi alvo. Embora com atraso, a Corte reafirmou a ilegalidade do uso da máquina pública para a obtenção de vantagens nas urnas. O ponto negativo foi a não responsabilização dos culpados.

Pela lei eleitoral, o governo pode distribuir benefícios à população em ano de eleições. Mas deve haver justificativa para isso. Diante da catástrofe climática ocorrida no Rio Grande do Sul a meses das eleições municipais deste ano, não se esperava outra coisa senão um conjunto de medidas emergenciais para ajudar o estado a enfrentar os prejuízos causados pelas chuvas. Aprovadas pelo Congresso há dois anos, as decisões tomadas pelo governo Bolsonaro foram de outra natureza. Não havia sustentação para a decretação do estado de emergência.

A alta do preço do barril de petróleo e a depreciação do real observadas em 2021 não motivaram o governo a tomar medidas assistencialistas. Apenas quando faltavam poucos meses para o primeiro turno das eleições presidenciais, Bolsonaro ordenou a gastança que ultrapassou a marca de R$ 40 bilhões. Criou ajuda financeira para caminhoneiros autônomos e motoristas de táxi, dobrou o valor do vale-gás e elevou o benefício do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600. O número de famílias do principal programa de transferência de renda saiu de 18 milhões em março de 2022 para 21 milhões em outubro. Somente após o fim das eleições, o governo determinou o início da investigação sobre a alta suspeita. Em um único ciclo eleitoral, Bolsonaro cometeu inúmeras irregularidades. Nos dias seguintes ao primeiro turno, o governo anunciou a antecipação do calendário de pagamento do Auxílio Brasil. Entre o primeiro e o segundo turno, a Caixa Econômica Federal relançou programa de renegociação de dívidas de pessoas físicas e jurídicas.

Em voto que prevaleceu, o ministro Gilmar Mendes foi categórico: “O conjunto da obra permite asseverar, sem qualquer medo de errar, que vários dos instrumentos empregados pelo governo federal tinham escopo puramente eleitoral, o que pode ser comprovado, inclusive, pela temporalidade de parcela significativa das medidas. A desfaçatez era tamanha que inúmeros benefícios criados visando ao período eleitoral tinham vigência limitada ao término do ano de 2022, isso quando não iniciados e findados entre o primeiro e o segundo turnos”. Bolsonaro banalizou o conceito de estado de emergência, e o STF fez bem ao condenar o uso do dinheiro público para apoio eleitoral.

Governo deve fazer mais pela segurança dos povos indígenas

O Globo

Ataque em MS deixou dez feridos. Relatório constatou aumento de 16% nos assassinatos em um ano

O ataque a tiros contra dez guaranis-caiouás na Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, em Douradina (MS), no último sábado, chamou a atenção do país mais uma vez para as ameaças à segurança dos povos indígenas. Ao menos três baleados estão internados. Segundo o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a violência teve início após a saída de agentes da Força Nacional do local.

As agressões acontecem apesar das promessas do governo. Depois de relegados a segundo plano na gestão passada, os indígenas ganharam visibilidade. Até foi criado um ministério dedicado a eles. Mas só criar ministérios não basta. Em 2023, segundo dados do Cimi, os assassinatos de indígenas cresceram 15,5%, de 180 para 208.

As mortes se distribuíram principalmente pelos estados de Roraima, Mato Grosso do Sul, Amazonas, Maranhão e Rio Grande do Sul. O relatório do Cimi também registra que, apesar do crescimento nos assassinatos, as agressões contra indígenas recuaram levemente. O dado considera, além dos homicídios, casos de abuso de poder, ameaças, lesões corporais, racismo, tentativa de assassinato e violência sexual. De 2022 para 2023, as ocorrências caíram de 416 para 404. Em contraste, na comparação com o ano anterior, os suicídios de indígenas aumentaram em 2023, mesmo entre os jovens de até 19 anos.

O estopim da violência contra indígenas costuma ser o avanço sobre seus territórios por desmatadores em busca de madeira, expansão de pastagens, extração de areia ou outros recursos minerais. A mais ativa fronteira de avanço sobre terras indígenas é o garimpo ilegal. É o que acontece no território ianomâmi, em Roraima e no Amazonas. Logo após a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, houve intensa mobilização para afastar os garimpeiros da região. Passados alguns meses, eles voltaram. O garimpo ilegal, em aliança com o crime organizado, também contamina rios e peixes com mercúrio.

A reação do governo foi apenas citar ações que executa. A Força Nacional, segundo o Ministério da Justiça, atua em terras indígenas para “manter a ordem pública e garantir a segurança e integridade das pessoas e do patrimônio”. Nas operações realizadas em 21 territórios indígenas, diz ter apreendido quase 6 toneladas de metais preciosos, 300 animais, 4,3 mil litros de combustível e R$ 1,1 milhão de origem ilícita. Garante estar hoje em operação nos territórios ianomâmi, caripuna, arariboia, caiapó, mundurucu, Trincheira- Bacajá e Uru-Eu-Wau-Wau.

Ainda assim, o Estado brasileiro continua em dívida com os povos indígenas. É preciso fazer mais e melhor. A violência parece ter se tornado corriqueira em diversas regiões do país. Já era tempo de o poder público ter desenvolvido políticas para combatê-la. Na mediação de conflitos de terra, como acontece em Mato Grosso do Sul, é preciso garantir direitos aos indígenas e aos produtores rurais. Para além dos discursos, o governo precisa reagir com medidas concretas e eficazes. O relatório do Cimi não pode ficar esquecido nas prateleiras e gavetas da burocracia em Brasília.

Indústria e emprego animam previsões para o PIB do ano

Valor Econômico

Os juros ainda estão altos e devem frear a economia. Mais importante do que nunca ter uma situação fiscal saudável que permita a queda dos juros

O desempenho recente da indústria em junho e do emprego no trimestre encerrado neste mês deram novos sinais positivos que impulsionam as previsões para o Produto Interno Bruto (PIB). A reação da produção gaúcha foi mais rápida do que se esperava, e o mercado de trabalho vive seu melhor momento em dez anos.

A produção industrial cresceu 4,1% em relação a maio, segundo o IBGE. Foi o melhor resultado da série desde julho de 2020 e mais do que compensou o declínio acumulado nos dois meses anteriores. Somente em maio a produção industrial recuou 1,5% pelo dado revisado. Na comparação com junho de 2023, a alta foi de 3,2%.

A indústria passou assim a acumular crescimento de 2,6% neste ano. Com esses resultados, o setor industrial está 14,3% abaixo do nível recorde alcançado em maio de 2011 e 2,8% acima do patamar pré-pandemia, em fevereiro de 2020; e ainda iguala-se ao nível de 15 anos atrás, em maio de 2009.

Muito do bom desempenho de junho se deve à retomada da produção no Rio Grande do Sul. Após o choque inicial causado pelas enchentes, houve recuperação da produção de fumo, de químicos e na metalurgia, que cresceram 19,8%, 6,5% e 5%, respectivamente. A produção de derivados de petróleo e biocombustíveis também contribuiu, após a suspensão das paradas técnicas em algumas das refinarias da Petrobras.

As quatro grandes categorias do setor industrial - bens de capital, intermediários, com peso de 55% na indústria, duráveis, semi e não duráveis - tiveram alta na atividade. Puxado pelos automóveis, os bens de consumo duráveis ficaram na dianteira, com expansão de 4,4%.

A recuperação do mercado de trabalho, por seu lado, ganhou mais fôlego. Segundo o Caged divulgado pelo Ministério do Trabalho, o mercado registrou abertura líquida de 201.705 vagas com carteira assinada em junho, disseminada pelos cinco setores da economia, mas em maior quantidade em serviços e comércio.

Os números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) do IBGE também surpreenderam - a taxa de desemprego caiu para 6,9% no segundo trimestre, 1 ponto abaixo dos 7,9% dos primeiros três meses do ano, e pouco mais do que isso em comparação com os 8% do mesmo período de 2023. É o menor patamar de desemprego em um segundo trimestre desde 2014, quando também foi de 6,9%.

O número de trabalhadores ocupados cresceu 1,6% no trimestre, para 101,8 milhões de pessoas, novo recorde da série histórica da pesquisa, iniciada em 2012. Também foram recorde a quantidade de trabalhadores com carteira assinado no setor privado (38,4 milhões) e a de informais (39,3 milhões). O crescimento dos formais, com melhor remuneração, contribuiu para a expansão da massa de rendimento dos trabalhadores para o patamar histórico de R$ 322,6 bilhões. Além disso, o Indicador Antecedente de Emprego (IAEmp), calculado pelo FGV Ibre, subiu 2,2 pontos em julho, maior nível desde setembro de 2022, sinalizando que o mercado de trabalho seguirá aquecido, mesmo que com menor intensidade.

A combinação desses indicadores positivos desencadeou uma onda de revisão de projeções para o PIB do segundo trimestre e do ano todo. As estimativas para o segundo trimestre, que oscilavam de 0,2% a 0,5%, agora atingiram até 1% na análise do C6 Bank e da Pezco. Para o ano fechado, o G5 Partners projeta 2,3% com viés de alta e o C6 Bank e o grupo Laatus falam em 2,5%. O Boletim Focus desta semana aponta 2,2%. O mercado aproxima-se assim dos números do governo - o Ministério da Fazenda projeta alta de 2,5%, e o Banco Central (BC), de 2,3%.

As revisões otimistas para a economia também foram captadas pelo Índice de Confiança Empresarial (ICE) calculado pelo FGV Ibre, que subiu 1,3 ponto entre junho e julho, para 97,6 pontos, maior alta desde novembro de 2023, e o melhor patamar desde setembro de 2022. O bom humor está disseminado por comércio, serviços, construção e indústria. É notável a boa fase da construção, animada com a retomada do programa Minha Casa Minha Vida. Comércio e serviços retomam a confiança com a melhora do emprego e do rendimento dos trabalhadores.

O horizonte não é todo azul e sem nuvens. A escalada do dólar já se reflete no Índice de Preços ao Produtor (IPP) do IBGE, que mede a inflação na “porta de fábrica”, sem impostos e fretes. O IPP subiu 1,28% em junho, em comparação com 0,36% em maio, a mais forte alta em dois anos, e a maior taxa desde maio de 2022. A valorização do real eleva o custo de insumos importados. Há também produtos cujos preços se alinham ao dólar por conta da penetração no mercado internacional, como petróleo, minério de ferro e óleo bruto de soja.

Além disso, o outro lado da moeda do aquecimento da atividade, aumento do emprego e da renda é tornar mais lenta a queda da inflação. O BC já interrompeu o processo de redução dos juros e a sinalização apontada no comunicado de sua última reunião indica inflação desancorada e pressão do dólar. Os juros ainda estão altos e devem frear a economia. Mais importante do que nunca ter uma situação fiscal saudável que permita a queda dos juros.

Polos ditam a avaliação de Lula e Bolsonaro

Folha de S. Paulo

Datafolha mostra popularidade do petista estável, refletindo divisão do eleitorado observada desde o governo anterior

A mais recente pesquisa do Datafolha sobre a popularidade de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) mostrou estabilidade, em um eleitorado dividido em três partes de dimensões bastante parecidas.

Consideram o governo do petista ótimo ou bom 35% dos brasileiros aptos a votar; outros 33% o classificam como ruim ou péssimo; para 30%, é regular. São números muito semelhantes aos do levantamento anterior, de junho, com alguma piora na margem de erro —antes, detectaram-se aprovação de 36% e reprovação de 31%.

Causa espécie que os percentuais também sejam similares aos obtidos por Jair Bolsonaro (PL) à mesma altura de seu mandato. Em agosto de 2020, o então presidente da República marcava 37% de ótimo/bom, 34% de ruim/péssimo e 27% de regular.

É notável que esses índices tenham sido registrados sob o impacto devastador da pandemia de Covid-19 sobre a saúde pública e a atividade econômica, tratado à base de negacionismo por Bolsonaro. À primeira vista, trata-se de uma comparação vexatória para Lula.

Cabe ponderar, entretanto, que naquele período a popularidade presidencial havia sido inflada, ao que tudo indica, pelo pagamento do auxílio emergencial de R$ 600 mensais —uma medida tomada pelo Congresso, mas que de todo modo favoreceu o Planalto.

Até ali, aquela era a melhor avaliação atribuída pelos eleitores a Bolsonaro. Nos meses seguintes, de desastrosa resposta à pandemia e ataques golpistas às instituições, a reprovação ao mandatário subiria até um pico de 53% em setembro e dezembro de 2021.

Ao final do governo, contudo, o prestígio estava recuperado, com 39% de ótimo/bom e 37% de ruim/péssimo, apontando uma polarização da sociedade que também se reflete no escrutínio de Lula.

Desde o início do ano passado, as pesquisas do Datafolha mostram variações pequenas, em geral na margem de erro ou próximas dela, no julgamento do governo petista —melhoras e pioras da economia, declarações polêmicas e tensões políticas surtiram efeito pequeno no panorama.

É verdade que nesta administração não houve, até agora, momentos agudos de crise nem de euforia. Mas parece razoável imaginar que preferências arraigadas nos dois polos do eleitorado brasileiro tendam a conter mudanças bruscas da popularidade presidencial, para cima ou para baixo.

Não por acaso, tanto Lula como o inelegível Bolsonaro priorizam manter a mobilização de seus apoiadores mais fiéis, atiçando-os contra o campo oposto. No entanto a parcela que resta dos votantes, deixada em segundo plano, pode ser mais uma vez decisiva na disputa.

Oropouche mais grave

Folha de S. Paulo

Vírus causa mortes inéditas com impulso de mudança do clima e saneamento escasso

O avanço da febre oropouche no país evidencia como políticas de longo prazo, que articulem os setores de meio ambiente e infraestrutura urbana, são fundamentais para a proteção da saúde pública.

Entre janeiro e 28 e julho deste ano, o Ministério da Saúde registrou 7.286 casos da doença em 21 estados; foram confirmadas mortes de dois adultos na Bahia e uma fetal em Pernambuco.

No sábado (3), a Organização Pan-Americana da Saúde mudou a categorização de risco do fenômeno de "moderado", no início do ano, para "alto", dadas a alta na contaminação, a transmissão vertical (da gestante para o feto) e mortes inéditas —até então, a literatura científica global não havia relatado óbito por causa da moléstia.

A febre oporouche é causada pelo vírus Orov, que é transmitido pelo mosquito Culicoides paraensis, conhecido como maruim. Em ambientes urbanos, o comum pernilongo (Culex quinquefasciatus) também é vetor da infecção.

O vírus é endêmico da região amazônica e surtos são registrados no país desde os anos 1960. Segundo especialistas, o avanço atual pode estar relacionado a inundações inauditas na amazônia entre 2020 e 2021, geradas pelo fenômeno La Niña —já que o clima úmido é propício para o inseto.

Ademais, o desmatamento aliado à urbanização acelerada gera alterações no ecossistema que expandem o raio de ação do inseto.

O precário saneamento básico brasileiro, atrasado por décadas de ineficiência estatal, também contribui para a reprodução do vetor que, como a do mosquito da dengue, se dá por meio de água parada.
Para piorar, uma nova cepa do Orov, que se replica até cem vezes mais do que o vírus original, pode estar vinculada ao surto em curso.

No curto prazo, só resta preparar as redes para atender os pacientes e criar campanhas de conscientização para evitar contaminação.

À frente, contudo, caberá a todas as esferas de governo adotar ações estruturais para conter doenças infeciosas e aliviar a pressão sobre o sistema de saúde pública —que nos próximos anos já terá de enfrentar o desafio do envelhecimento populacional.

Quem é democrata não se junta a Bolsonaro

O Estado de S. Paulo

Ricardo Nunes prometeu defender o ‘legado democrático’ de Bruno Covas. Mas ele precisa decidir se honra a memória do antecessor ou se mantém o pacto com um golpista como Bolsonaro

O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), deve fazer uma escolha crucial em nome da sinceridade de seu posicionamento político: ou bem ele se apresenta aos paulistanos como defensor do “legado democrático” do ex-prefeito Bruno Covas (PSDB) ou ele se associa ao ex-presidente Jair Bolsonaro. É impossível defender a democracia em cima de um palanque ao lado de um golpista como Bolsonaro – como Nunes fez na convenção de seu partido, no sábado passado.

Talvez por saber que Bolsonaro seja um fardo pesado demais para ser carregado, Nunes fez questão de enfatizar que sua eventual reeleição representará a “continuidade do legado democrático” de Bruno Covas, falecido em 2021. Mas, ora, não se pode ajoelhar sob o altar da democracia ao mesmo tempo que, em troca de votos, se faz um pacto com um sujeito como Bolsonaro, o mais perigoso inimigo do Estado Democrático de Direito que este país já enfrentou – e venceu – nos últimos 40 anos.

Para fazer justiça a Nunes, deve-se registrar que não há nódoa na trajetória política do prefeito que o impeça de figurar no rol dos verdadeiros democratas. Isso leva à conclusão de que sua aliança com Bolsonaro visa, como é óbvio, à conquista dos votos dos bolsonaristas na capital paulista, que não são poucos. Porém, a conveniência circunstancial do prefeito não deveria se sobrepor à coerência de sua própria história nem muito menos à memória de Bruno Covas e à de seu avô, o ex-governador Mário Covas – que nem estão mais aqui para se defender dessa exploração política baixa.

Recorde-se que, em 27 de janeiro de 2020, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, o então prefeito Bruno Covas foi taxativo ao se dissociar da “visão de mundo” do então presidente Jair Bolsonaro. Ademais, Bruno foi claríssimo ao expor a razão pela qual não havia votado em Bolsonaro nas eleições de 2018. “Eu não posso votar em alguém que diz que não houve ditadura quando eu tive um avô que foi preso e cassado pela ditadura militar”, disse Bruno na ocasião.

Passados mais de quatro anos daquela entrevista, na qual Bruno Covas não poderia ter sido mais explícito sobre o que pensava de Bolsonaro, fica claro que o falecido prefeito provavelmente não subiria num palanque com o ex-presidente. Além de ser a antítese da democracia, Bolsonaro, um negacionista militante, desrespeitou Bruno Covas por ter conduzido São Paulo com coragem e disciplina na pandemia de covid-19 – e o fez quando Covas já estava morto, o que é a epítome da perversidade bolsonarista.

A família Covas tem uma história irrepreensível de defesa da democracia no Brasil. Sob nenhuma justificativa honesta, o sobrenome Covas pode figurar ao lado de representantes do que há de mais reacionário e antidemocrático no País. Mário Covas, convém lembrar, não só enfrentou a ditadura, como foi determinante para que o regime das liberdades se firmasse diante dos ataques dos irresignados com a reabertura, como Bolsonaro.

Para citar só um exemplo da firmeza das convicções democráticas de Mário Covas, o tucano não hesitou em apoiar a petista Marta Suplicy quando esta disputou o segundo turno da Prefeitura da capital paulista, em 2000, contra Paulo Maluf, uma espécie de Bolsonaro que sabia ler e escrever. Covas, um político íntegro como hoje quase não há, sabia bem qual dos dois candidatos representava o atraso, a desonestidade e o autoritarismo. “Maluf, nem pensar”, declarou Covas, que obviamente não morria de amores pelo PT – ao contrário, sabia perfeitamente que o partido de Marta fazia de tudo para sabotar os esforços reformistas dos tucanos. Mas o ex-governador sabia também que era preciso, em primeiro lugar, proteger São Paulo do malufismo, assim como hoje é imperativo impedir que o bolsonarismo crave suas garras na maior cidade do País.

Por tudo isso, não é possível reivindicar a liderança de uma tal “frente ampla” pela democracia contra Guilherme Boulos (PSOL), como fez Nunes no palanque, quando se tem Bolsonaro, que efetivamente atentou contra a democracia, como principal padrinho de sua candidatura. Ademais, a reprodução dessa disputa ideológica nacional no âmbito municipal só presta para desviar as atenções dos reais problemas da metrópole, sobre os quais Ricardo Nunes, a propósito, deve prestar contas como prefeito.

Oportunismo escancarado

O Estado de S. Paulo

Mal se elegeu deputada por SP, Rosangela Moro torna a transferir título para Curitiba para se candidatar a vice-prefeita, caso que ilustra o esvaziamento da representação eleitoral

Não faz nem dois anos que a advogada paranaense Rosangela Moro (União Brasil) transferiu seu domicílio eleitoral para São Paulo a fim de concorrer a uma vaga como deputada federal. Sem jamais ter morado no Estado, apresentou-se como apta a representar os interesses dos paulistas no Congresso. Por alguma razão insondável – talvez o sobrenome do marido, o ex-juiz Sérgio Moro, sempre lembrado por sua atuação na Lava Jato, a tenha ajudado mais do que suas desconhecidas propostas eleitorais –, a sra. Moro foi eleita, e com expressivos duzentos e tantos mil votos. Eis que agora, no entanto, São Paulo já não interessa mais à deputada: ela tornou a transferir o domicílio eleitoral para o seu Paraná natal, onde, conforme acaba de anunciar, pretende concorrer como vice na chapa à prefeitura de Curitiba encabeçada pelo deputado estadual Ney Leprevost (União Brasil).

Logo que assumiu a nova candidatura, a sra. Moro deixou claro que São Paulo foi apenas um acidente insignificante em sua vida. “Pela primeira vez, Curitiba tem uma chapa de pré-candidatos com uma legítima representante da ‘República de Curitiba’”, declarou a orgulhosa curitibana, fazendo referência à turma da Lava Jato liderada por seu marido e claramente mais à vontade do que quando se viu forçada a comer pastel de feira para parecer paulistana.

Se São Paulo é irrelevante para a sra. Moro, a sra. Moro, por razões evidentes, é irrelevante para São Paulo, mas seu caso ajuda muito a ilustrar como um péssimo hábito da política está se tornando cada vez mais arraigado: a mudança de domicílio eleitoral exclusivamente para buscar melhores chances de vencer uma eleição.

A sra. Moro certamente não será a última pessoa a mudar de domicílio eleitoral conforme conveniências que nada têm a ver com os interesses dos eleitores. Recentemente, é bom lembrar, o carioca Tarcísio de Freitas mudou seu domicílio eleitoral para São José dos Campos, onde nunca viveu, a fim de disputar o governo paulista por ordem de seu padrinho, o ex-presidente Jair Bolsonaro. Agora, Tarcísio mudou de novo de domicílio eleitoral, para a capital, com o objetivo de votar no prefeito Ricardo Nunes, a quem apoia.

Até pouco tempo atrás, o mais célebre símbolo desse nomadismo eleitoral era o maranhense José Sarney, que depois de deixar a Presidência da República em 1990, rejeitado pela maioria dos brasileiros, teve que se candidatar ao Senado pelo Amapá, e não pelo Maranhão, seu feudo político. Apesar de poucas vezes ter sido visto no Amapá, seja antes ou depois das eleições de que participou, Sarney foi eleito três vezes.

Desde então, registram-se outras dezenas de casos, de Damares Alves a Eduardo Bolsonaro, de Marina Silva a Eduardo Cunha. Está claro que o domicílio eleitoral está se tornando uma mera formalidade. Não deveria ser.

A legislação é flexível no que diz respeito ao domicílio eleitoral. De fato, não há necessidade de morar em determinado lugar para estabelecer esse domicílio. Basta ter algum vínculo profissional, familiar, patrimonial ou político com a cidade para a qual o candidato queira transferir seu título. No entanto, quando se pretende representar os interesses dos eleitores no Congresso Nacional, é conveniente conhecer os dramas e as aspirações desses eleitores. Do mesmo modo, quando se pretende administrar uma cidade ou um Estado, deveria ser obrigatório conhecer os problemas com os quais o candidato terá que lidar, seja ao apresentar propostas na campanha, seja quando tiver que governar, caso vença a eleição.

Nada disso parece ser levado em conta nos cálculos dos partidos e dos candidatos quando se montam estratégias de campanha que incluem mudança de domicílio eleitoral. Não se oferece mais uma genuína representação local, e sim um discurso ideológico vazio, que drena as energias políticas do País e nada tem a ver com problemas reais. Os candidatos não precisam mais nem comer pastel para fingir que são paulistanos; basta que sejam notórios, truculentos ou excêntricos o bastante para angariar votos de quem perdeu a fé na política.

O pulo do gato

O Estado de S. Paulo

Eletrobras quer repassar Eletronuclear em troca de vagas no Conselho para o governo

A obstinação do governo Lula da Silva de elevar seu poder de decisão na Eletrobras renderá à companhia, privatizada há dois anos, a chance de se desvencilhar de um ativo incômodo: a participação de 35% na Eletronuclear. Em troca do aumento de um para três assentos da União em seu Conselho de Administração, a Eletrobras negocia entregar sua parte na Eletronuclear, que voltaria a ser 100% estatal, recebendo como pagamento uma pequena parcela (em torno de 3%) dos 43% que a União manteve em seu capital depois da privatização.

Acaba sendo para a Eletrobras um bom negócio, que somente o interesse político do governo sobre a empresa pode justificar. A queda de braço para retomar o poder estatal na companhia – que historicamente serviu de central para o loteamento de cargos entre partidos políticos – se arrasta desde a posse de Lula e em maio do ano passado passou à esfera do Supremo Tribunal Federal (STF), numa ação impetrada pela Advocacia-Geral da União (AGU).

Astutamente, o governo não questionava a privatização, mas a fixação do limite de voto de qualquer acionista a 10%, independentemente de sua proporção no capital, um dos pilares que garantiram o interesse privado na companhia. Trata-se de um mecanismo comum no mercado para garantir a governança de companhias com capital pulverizado e sem controlador, que passou a ser o caso da Eletrobras. Ocorre que o governo reivindicava na Justiça o direito à indicação de conselheiros em número proporcional à sua participação societária remanescente.

Ao que tudo indica, o acordo deve ser fechado com a composição do Conselho de Administração – instância onde são tomadas as decisões estratégicas da empresa – aumentando de 9 para 10 membros. Ou, seja, mesmo com três indicados, matematicamente o poder do governo nas decisões não chegará a um terço. Sem dúvida será uma participação forte, mas não o suficiente para empurrar de pronto a Eletrobras ao papel de financiadora dos projetos lulopetistas, como parece ser a intenção do governo.

De outro lado, passando adiante a problemática e endividada Eletronuclear, a Eletrobras se livra de vez de um fator que contribui para travar a valorização de suas ações. A companhia, responsável pela administração das usinas nucleares de Angra dos Reis, foi retirada do processo de capitalização justamente por isso e também pela questão de segurança nacional embutida no segmento de energia nuclear. Angra 1, em período de renovação de concessão, precisa de investimentos estimados em R$ 3 bilhões. Já a inconclusa Angra 3 precisa de mais de R$ 20 bilhões para terminar a obra.

De acordo com reportagem do Estadão, na negociação o governo tenta ainda antecipar parte dos R$ 32 bilhões da outorga que a Eletrobras deveria pagar em 25 anos. Quer antecipar R$ 20 bilhões até 2026, quando termina o mandato de Lula, para abater a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) e baratear as contas de luz. Decerto um paliativo temporário, já que a CDE, que banca subsídios do governo, tem orçamento anual que já passa de R$ 37 bilhões. A obsessão do governo com a Eletrobras está com jeito de tiro no pé.

Transplante é ato de solidariedade

Correio Braziliense

O Brasil ocupa a segunda posição no mundo em número de transplantes, atrás dos Estados Unidos. No ano passado, no DF, foram realizados 839 procedimentos, e nos primeiros seis meses deste ano, 456

A finitude da vida é inevitável. Condições sociais, econômicas, raça, cor e poder não blindam ninguém da morte. Ela chega para todos, desde o mais pobre até o mais rico. Mas os avanços da ciência e da medicina permitem, por meio do transplante de órgãos, recuperar a saúde dos que sofrem com a falência de algum deles, cuja função é indispensável para continuarem vivos.

Hoje, o Brasil ocupa a segunda posição no mundo em número de transplantes, atrás dos Estados Unidos. Um bom exemplo vem do Distrito Federal, onde cresce o número de transplantes, permitindo alongar o tempo de vida das pessoas que necessitam dessa intervenção para recuperar a saúde. Nacionalmente, a capital da República ocupa o segundo lugar em número de transplante renal, de medula e córnea, e o primeiro em coração e fígado. 

No ano passado, na capital da República, foram realizados 839 procedimentos e, nos primeiros seis meses deste ano, 456. Mantido o atual ritmo, a expectativa é de um recorde de transplantes no Distrito Federal. Minas Gerais, nos primeiros nove meses do ano passado, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), realizou 1.435 transplantes, sendo  557 de rim, 138 de fígado, 60 de coração, 11 de pâncreas e rim, seis de pâncreas, e 663 de córnea. São Paulo  foi o estado que mais fez transplantes de órgãos — 7,2 mil —, o que representou um aumento de 7% na comparação com 2022, e o maior número dos últimos seis anos.

De acordo com a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), em 2023 foi extraordinário, com taxas de doação e transplante superiores aos de anos anteriores. O relatório da instituição mostrou que foram recorde as taxas de doadores e transplantes de fígado, coração, córneas e células hepáticas. Desde o fim da pandemia de covid-19, 2023, a taxa de procedimentos de córneas (78,8 em cada 1 milhão) foi a melhor do que as registradas em anos anteriores.

Para o Ministério da Saúde, o resultado do ano passado foi o melhor da última década, com 29.261 transplantes.  Porém, no primeiro semestre deste ano, ocorreu uma queda nas doações (4%) e nos procedimentos cirúrgicos, o que frustrou a expectativa  de alcançar  taxas superiores às do ano anterior.

No próximo mês, o Ministério da Saúde deverá lançar mais uma edição da campanha Setembro Verde, criada pela Lei nº 15.463/2014, a fim de conscientizar a população sobre a importância da doação de órgãos, cujo dia nacional é 27 de  setembro. Por mais incongruente que pareça, tanto na vida quanto na morte,   é possível adiar o encontro de um de um igual com a morte. Basta um gesto honroso de solidariedade com os que sofrem devido ao colapso da função de um elemento do seu corpo. É também uma forma de manter o elo de afeto com o ente querido que se foi, mas que permanecerá vivo não só na saudade e na lembrança, mas por ter salvo uma vida, ainda que a tenha perdido.

 

 

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