O Globo
Confiança supõe conhecimento, mínimo que
seja. Inexiste, se eu não me lembro sequer do representante que escolhi
Se um orador em qualquer auditório perguntar
à plateia se acha necessário mudar a política, quase todos os braços se
levantarão. De esquerda, centro e direita. Os dois ou três reticentes serão
certamente de cientistas políticos “nefelibatas”, como diria Fernando
Henrique Cardoso, que, de pronto, arguirão o óbvio — essa
insatisfação é generalizada no mundo. O que não deveria, contudo, fazê-los
desconhecer o diferencial de intensidade dos problemas daqui e ignorar os
sinais do abismo à frente.
As disfunções do nosso sistema político são variadas. Por ora, foquemos de um lado no “presidencialismo esgotado”; de outro, na “representação sem fidúcia”, para os quais há diversos indicadores, mas por economia de espaço abordo apenas dois.
Abstraindo-se qualquer etiologia, examinemos
o que denomino “taxa de sinistralidade” dos presidentes eleitos na 4ª e na 6ª
Repúblicas — a do Pós-Guerra e a atual —, deixando-se de lado as demais por
terem escassa ou nenhuma conformação democrática. E apenas dos titulares,
valendo para a análise o período dos mandatos e eventuais ocorrências dele
derivadas. Na primeira fase, dos quatro presidentes, dois exercícios foram
encerrados dramaticamente: Getúlio
Vargas (1954) suicidou-se, e Jânio Quadros (1961)
renunciou. Cinquenta por cento de sinistralidade. Na Nova República,
independentemente das reeleições, foram até agora cinco personagens, dos quais
quatro amargaram problemas graves. Fernando
Collor sofreu impeachment (1992); Dilma
Rousseff também (2016); Lula foi
preso (2018) e declarado inelegível (o que seria depois revertido); e Jair
Bolsonaro foi tornado inelegível (2023) sem ainda ter sido
preso. Quatro em cinco. A taxa sobe para 80%. A que montante queremos chegar?
Quanto à representação sem fidúcia, para
prová-la basta um número. Axiomaticamente, confiança supõe conhecimento, mínimo
que seja. Inexiste, se eu não me lembro sequer do representante que escolhi. Em
setembro de 2023, menos de um ano depois da eleição dos atuais deputados
federais, questionados pelo Ipec se lembravam o nome daquele/a em quem haviam
votado, apenas 29% disseram que sim. E é legítimo supor que esse baixíssimo
registro ainda diminuiria caso fosse indagado e conferido o candidato sufragam
Sendo inequívoco o impacto da governança que
um sistema político propicia sobre a performance da sociedade, os dados que O
GLOBO trouxe em editorial de 23/6/2024 são um veredito condenatório. Calculou
quanto cresceu ao ano a renda per capita entre 2010 e 2023 — período
interessante porque por ele passaram governos de todo o espectro ideológico —,
chegando à cifra de 0,2%. E projetou o momento em que dobraríamos o padrão de
vida, imprescindível para arrancar o país da pobreza que aflige grande parte da
população. A conclusão, estarrecedora, é que isso se daria no distante ano de
2368.
Alguém lembrará que até aqui o Judiciário não
foi citado. É verdade e é deliberado, independentemente da obviedade de que
esse Poder também precisa mudar. Presidentes escolhem os juízes da Suprema
Corte, que são confirmados ou não pelo Senado. Não é mudando o Judiciário que
se muda o padrão de governação e de representação. O roteiro é o inverso.
E quais as mudanças possíveis? Quanto ao
regime, um sem-número de vozes já diagnosticou a inevitabilidade de avançarmos
na direção de um sistema misto. Mais francês ou mais português, o que seja.
Entre nós, na ausência de um monarca, é enraizada a ideia da legitimação do
poder pela escolha direta. Lá atrás, isso justificou as duas primeiras eleições
nacionais — para a Regência Una (1835 e 1838). No século passado, essa
preferência seria confirmada nos plebiscitos de 1963 e 1993. Não retrocedendo à
captura do Orçamento pelo Parlamento, caberá adotar a convivência entre um
presidente chefe de Estado e um chefe de governo escolhido pelo Congresso. Se é
expressivo o agregado de líderes políticos e de intelectuais que apostam nisso,
diminui bastante o daqueles que se ocupam do esforço de superação da
representação sem fidúcia, que exige mudança no sistema eleitoral. Mas não será
possível termos o primeiro-ministro e o gabinete parlamentar toleráveis aos
olhos da sociedade com os partidos “hidropônicos” que temos hoje.
*Antonio Lavareda, presidente do Conselho Científico do Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe), é professor colaborador da pós-graduação em ciência política da UFPE e presidente de honra da Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais. Este artigo é uma síntese da palestra na mesa “Reforma política” no 14º Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política ABCP/CDESS
Um comentário:
É verdade, grande parte da juventude com o ensino médio completo têm dificuldade em discernir entre Gênero, Número e Grau.
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