O Estado de S. Paulo
Na tradição da esquerda – como mostram Allende e Berlinguer – há um repertório alternativo a ser ‘aggiornato’ e requalificado
Um reel do escritor chileno Roberto Bolaño Ávalos, que circula nas redes, evoca comovidamente Salvador Allende e a tragédia do golpe de 1973. De modo contundente, Bolaño descreve a desilusão inicial dos jovens de então, que em vão esperavam as armas negadas pelo presidente em vias de ser deposto e morto. Allende aparecia como um conservador, capaz de cometer quase uma traição, fugindo à luta no momento decisivo. Sua imagem, no entanto, ao longo do tempo, iria se agigantar, ao evitar os horrores da guerra civil e poupar do aniquilamento toda uma geração ou a maior parte dela. É que a derrota de Allende e da Unidade Popular, naquele Chile tão distante, já estava definida pela política, não pelas armas, como se deduz das palavras de Bolaño.
Essa lição essencial seria apreendida em
contexto diferente por outro político de exceção, o italiano Enrico Berlinguer.
A ideia – recorrentemente frustrada – de chegar ao socialismo por método
democrático, e não pela violência, também aquecia a imaginação da esquerda
reunida em torno do Partido Comunista Italiano (PCI), na época o mais influente
partido comunista do Ocidente. Nos dois países, a estrutura partidária se parecia:
o centro ou a centro-direita estava ocupado por um partido de mesma
denominação, a Democracia Cristã. E, sem um forte compromisso com as duas DCs,
aquela ideia não se realizaria ou até se arruinaria dramaticamente, como no
Chile.
Nem sempre sabemos bem como as concepções se
formam e se difundem, mas aqui temos uma pista. Na socialdemocracia clássica, a
transformação pacífica e a adesão à regra democrática era já uma conquista
secular. Entre socialistas e comunistas, no entanto, é bem possível afirmar
que, a partir de Allende e Berlinguer, algumas novidades se impuseram de modo
permanente, a saber, a recusa programática da violência política e a busca de
alianças ao centro, como garantia de mudanças gradativas, consensuais e pactuadas.
Exemplar, neste sentido, enquanto pôde dar
frutos, o percurso chileno pós-ditadura pinochetista. A palavra concertación
teve em si mais de um aspecto daquele compromesso storico proposto pelo PCI,
que nos anos 1970 faria circular o lema alvissareiro da “democracia (política)
como valor universal” – de resto, mais atual do que nunca. Não importa que, na
Itália, a hipótese berlingueriana de mudança tenha malogrado ou que, no Chile,
a partir da segunda década do século 21, a concertación tenhas e esvaziado,
como enfraquecimento do centro representado especialmente pelos
democratas-cristãos e socialistas. As realidades donovos éculo têm sido
inesperadas, mas, ainda assim, impõem o reexame do caminho percorrido e a
reconsideração dos fios dispersos.
De fato, os dois países foram varridos pelos
maus ventos da extrema direita. A Itália, desde Silvio Berlusconi, conheceu a
desestruturação do sistema de partidos do pósguerra, com o surgimento do
desafio populista que afronta audaciosamente as democracias ocidentais. Não
seria exagerado ver em Berlusconi, político sem escrúpulos e desenvolto homem
de negócios, a figura precursora de líderes desconcertantes, como o próprio
Donald Trump. O esvaziamento da concertación não se mede pelo fato de por duas
vezes ter cedido a presidência a um personagem da direita tradicional, como
Sebastián Piñera – a alternância, afinal, é um dado constitutivo da política
democrática.
A questão chilena reside na presente
dificuldade de estabelecer o necessário cordão sanitário em torno das forças
disruptivas da extrema direita. Tradicional país de “três terços” –
conservadores, centristas e progressistas, em condições de equilíbrio –, o
Chile de agora vê uma direita autoritária no comando de toda a direita, o
declínio do centro quase até o desaparecimento da DC, bem como uma esquerda
dividida, em busca de identidade, mas por certo minoritária. Bem verdade que
aos poucos, e com dificuldades, essa esquerda tem superado as veleidades
“refundacionais” nascidas do estallido social de outubro de 2019. É
significativo o fato de que dela tenha surgido Gabriel Boric, um dos
personagens marcantes da esquerda latino-americana. Egresso do movimento
social, que carregava extremismo em suas franjas, Boric rapidamente se
credenciaria como um social-democrata de novo tipo, atento aos direitos humanos
e, por isso, crítico coerente de regimes autoritários, inclusive de esquerda.
Deixando de lado as vicissitudes de governo,
não por último o impacto do colapso venezuelano e o fluxo de imigrantes em
desespero, esse é o legado que cumpre valorizar no ciclo eleitoral chileno e
mesmo depois. O Zeitgeist está marcado por uma “direita plebeia”, capaz de
manipular o medo e conquistar maiorias à base de ódio e ressentimento. Como
tantas vezes já aconteceu, a miragem do homem forte parece seduzir a massa de
indivíduos desconectados, atropelando violentamente as formas da política. Na
tradição da esquerda – como mostram Allende e Berlinguer – há um repertório
alternativo a ser aggiornato e requalificado. Não é possível ir adiante só com
o tal repertório – ainda mais difícil, porém, é ignorá-lo.
*Tradutor e ensaísta, é coeditor das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil

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