Tarso Genro é um político de esquerda, ou ao menos supõe ser. Sendo de esquerda, seria de se esperar dele a defesa da igualdade entre os homens - afinal, se há algo que distingue a esquerda da direita, é a defesa da igualdade, mesmo que em sacrifício de outros objetivos, como já nos ensinou Norberto Bobbio, dentre outros. Todavia, não foi isto o que se viu no discurso do novo governador gaúcho por ocasião do debate acerca das aposentadorias especiais para ex-governadores de Estado (objeto, inclusive, de um editorial do Valor nesta semana). No dia 21 de janeiro último, o governador do Rio Grande do Sul defendeu que ex-chefes de governo estadual fazem jus a um "estatuto de classe média". A pergunta que se poderia seguir é: por que ex-governadores, em especial, fazem jus a tal condição, mas outras pessoas não?
A explicação dada por Tarso Genro a isto é que os governadores amparados por tais aposentadorias não precisariam viver de favor, após deixar a função. A nova pergunta que se poderia fazer é: que problema há em ex-governadores viverem de favor?
Não é possível responder a esta segunda pergunta com base no critério humanitário, pois aí retornaríamos ao primeiro questionamento - se ex-governadores fazem jus a um estatuto de classe média para viverem dignamente, todos os demais cidadãos também o fazem. Daí, ou se estende o benefício a todos, ou - caso isto não seja possível - não se concede o mesmo a ninguém, por uma questão de equidade. A não ser que se acredite que ex-governadores são pessoas que merecem um tratamento privilegiado em relação aos demais cidadãos, uma distinção decorrente de seu status pessoal diferenciado em relação à malta composta por todos nós outros.
Ora, mas se Tarso Genro pensa deste modo, reconhecendo que alguns não são tão iguais assim, será ele realmente de esquerda? Ou, se preferirmos não colocar as coisas nestes termos ideológicos que, para alguns, já foram superados: será ele ao menos republicano? Afinal, neste início de mandato o novo chefe do Executivo gaúcho propôs aos demais Poderes um "pacto republicano" para resolver problemas do Estado, sendo que a ideia de república e o discurso baseado no republicanismo costumam povoar suas falas. Mas como defender a "res publica" ao advogar que os dinheiros comuns sirvam para assegurar ganhos privilegiados de alguns?
Aposentadoria privilegiada revela nossa desigualdade
Uma segunda justificativa, baseada na ideia de que os ex-mandatários não podem viver de favor ao deixar o cargo, seria o risco que tal condição ofereceria para a própria coisa pública. Ora, mas se estamos falando de pessoas que deixaram seus cargos e, portanto, não têm mais poder político e administrativo para causar danos aos interesses coletivos, novamente a defesa das aposentadorias (e as pensões, para os dependentes) torna-se pouco plausível.
Invoquei aqui o exemplo de Tarso Genro porque foi ele quem mais se aventurou a encontrar uma justificativa publicamente defensável para este privilégio. Ressalve-se, em seu favor, que não apenas "deu a cara a bater", mas também ponderou a necessidade de mudar a legislação para tornar menos inadequada tal sinecura. Todavia, mesmo com ajustes, continuaríamos a ter uma prebenda, inaceitável numa república de iguais. Outros, como seu conterrâneo Pedro Simon (sempre bradando na tribuna do Senado contra os ataques à coisa pública), ou o ex-governador do Paraná, Álvaro Dias (ácido crítico das imoralidades do governo de seus adversários), sequer tinham argumentos ou fizeram propostas de mudança. Um justificou o pedido da aposentadoria com base nas dificuldades financeiras que vem enfrentando (cidadãos comuns recorrem aos bancos, ou à família), e o outro alegou que desejava fazer caridade (com dinheiro público, bem entendido).
Seria fácil compreender este imbróglio, fosse o mero oportunismo legislativo a causa da aprovação de normas jurídicas que engendram privilégios deste gênero. Há, contudo, algo mais profundo - e pior - que torna possível a existência tão difundida dessas leis (Estados de norte a sul do país as contemplam) e de manifestações públicas de autoridades que procuram justificá-las. É a mesma causa que explica a emissão de passaportes diplomáticos para "pessoas muito importantes" (VIPs), sem que o interesse público possa - de fato - requerê-los. Isto decorre do entendimento difundido em nossa sociedade - e, sobretudo, na classe política - de que os cidadãos não são todos iguais. Acredita-se que alguns merecem tratamento privilegiado em decorrência do cargo que ocupam ou ocuparam (não apenas as aposentadorias, mas também o foro judicial privilegiado), da escolaridade que detêm (a antiga prerrogativa de prisão diferenciada para os detentores de diploma de curso superior), ou de sua ascendência familiar (vejam-se os casos da filha de Hercílio Luz, que ainda recebe uma pensão, ou das tetranetas de Tiradentes, que também desejam pleiteá-la).
Situações como esta fariam sentido se ainda vivêssemos numa sociedade estamental, em que uma nobreza fosse percebida pelas normas sociais vigentes como distinguida e merecedora de tais privilégios. De fato, convivemos com diversas sobrevivências de tal ordem nobiliárquica, ainda que seja difícil defendê-las publicamente sem acrobacias argumentativas como as invocadas por Tarso Genro e tantos outros. Ironicamente, a principal instituição a se insurgir jurídica e politicamente contra essa situação é a Ordem dos Advogados do Brasil, ela mesma uma vezeira defensora de privilégios corporativos para seus membros - ao feitio das corporações de ofício medievais. Isto mostra claramente que o problema da desigualdade no Brasil não diz respeito apenas à iníqua distribuição de renda, mas a diferenças de status social que afetam, inclusive, a apropriação da riqueza em nosso país. É uma desigualdade que está em descompasso com o avanço já bastante considerável das condições de competição política de nossa democracia, enquanto nos países democráticos mais avançados foi por aí que tudo começou.
Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
A explicação dada por Tarso Genro a isto é que os governadores amparados por tais aposentadorias não precisariam viver de favor, após deixar a função. A nova pergunta que se poderia fazer é: que problema há em ex-governadores viverem de favor?
Não é possível responder a esta segunda pergunta com base no critério humanitário, pois aí retornaríamos ao primeiro questionamento - se ex-governadores fazem jus a um estatuto de classe média para viverem dignamente, todos os demais cidadãos também o fazem. Daí, ou se estende o benefício a todos, ou - caso isto não seja possível - não se concede o mesmo a ninguém, por uma questão de equidade. A não ser que se acredite que ex-governadores são pessoas que merecem um tratamento privilegiado em relação aos demais cidadãos, uma distinção decorrente de seu status pessoal diferenciado em relação à malta composta por todos nós outros.
Ora, mas se Tarso Genro pensa deste modo, reconhecendo que alguns não são tão iguais assim, será ele realmente de esquerda? Ou, se preferirmos não colocar as coisas nestes termos ideológicos que, para alguns, já foram superados: será ele ao menos republicano? Afinal, neste início de mandato o novo chefe do Executivo gaúcho propôs aos demais Poderes um "pacto republicano" para resolver problemas do Estado, sendo que a ideia de república e o discurso baseado no republicanismo costumam povoar suas falas. Mas como defender a "res publica" ao advogar que os dinheiros comuns sirvam para assegurar ganhos privilegiados de alguns?
Aposentadoria privilegiada revela nossa desigualdade
Uma segunda justificativa, baseada na ideia de que os ex-mandatários não podem viver de favor ao deixar o cargo, seria o risco que tal condição ofereceria para a própria coisa pública. Ora, mas se estamos falando de pessoas que deixaram seus cargos e, portanto, não têm mais poder político e administrativo para causar danos aos interesses coletivos, novamente a defesa das aposentadorias (e as pensões, para os dependentes) torna-se pouco plausível.
Invoquei aqui o exemplo de Tarso Genro porque foi ele quem mais se aventurou a encontrar uma justificativa publicamente defensável para este privilégio. Ressalve-se, em seu favor, que não apenas "deu a cara a bater", mas também ponderou a necessidade de mudar a legislação para tornar menos inadequada tal sinecura. Todavia, mesmo com ajustes, continuaríamos a ter uma prebenda, inaceitável numa república de iguais. Outros, como seu conterrâneo Pedro Simon (sempre bradando na tribuna do Senado contra os ataques à coisa pública), ou o ex-governador do Paraná, Álvaro Dias (ácido crítico das imoralidades do governo de seus adversários), sequer tinham argumentos ou fizeram propostas de mudança. Um justificou o pedido da aposentadoria com base nas dificuldades financeiras que vem enfrentando (cidadãos comuns recorrem aos bancos, ou à família), e o outro alegou que desejava fazer caridade (com dinheiro público, bem entendido).
Seria fácil compreender este imbróglio, fosse o mero oportunismo legislativo a causa da aprovação de normas jurídicas que engendram privilégios deste gênero. Há, contudo, algo mais profundo - e pior - que torna possível a existência tão difundida dessas leis (Estados de norte a sul do país as contemplam) e de manifestações públicas de autoridades que procuram justificá-las. É a mesma causa que explica a emissão de passaportes diplomáticos para "pessoas muito importantes" (VIPs), sem que o interesse público possa - de fato - requerê-los. Isto decorre do entendimento difundido em nossa sociedade - e, sobretudo, na classe política - de que os cidadãos não são todos iguais. Acredita-se que alguns merecem tratamento privilegiado em decorrência do cargo que ocupam ou ocuparam (não apenas as aposentadorias, mas também o foro judicial privilegiado), da escolaridade que detêm (a antiga prerrogativa de prisão diferenciada para os detentores de diploma de curso superior), ou de sua ascendência familiar (vejam-se os casos da filha de Hercílio Luz, que ainda recebe uma pensão, ou das tetranetas de Tiradentes, que também desejam pleiteá-la).
Situações como esta fariam sentido se ainda vivêssemos numa sociedade estamental, em que uma nobreza fosse percebida pelas normas sociais vigentes como distinguida e merecedora de tais privilégios. De fato, convivemos com diversas sobrevivências de tal ordem nobiliárquica, ainda que seja difícil defendê-las publicamente sem acrobacias argumentativas como as invocadas por Tarso Genro e tantos outros. Ironicamente, a principal instituição a se insurgir jurídica e politicamente contra essa situação é a Ordem dos Advogados do Brasil, ela mesma uma vezeira defensora de privilégios corporativos para seus membros - ao feitio das corporações de ofício medievais. Isto mostra claramente que o problema da desigualdade no Brasil não diz respeito apenas à iníqua distribuição de renda, mas a diferenças de status social que afetam, inclusive, a apropriação da riqueza em nosso país. É uma desigualdade que está em descompasso com o avanço já bastante considerável das condições de competição política de nossa democracia, enquanto nos países democráticos mais avançados foi por aí que tudo começou.
Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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