Ex-ministro diz que reforma constitucional é desafio mais complexo do segundo governo da presidente chilena
Ricardo Solari - “El Mercurio”
SANTIAGO — O ex-ministro do Trabalho e “ex-cérebro” de Comunicação da campanha de Michelle Bachelet Ricardo Solari descreveu ao “El Mercurio” os desafios que a política enfrentará em seu segundo mandato presidencial a partir desta terça-feira, considerando o novo cenário político e social do país:
A ideia de um “novo ciclo” é o resultado de uma análise histórico-política rigorosa da sociedade chilena ou representa apenas o mero desejo de alguns dirigentes políticos? Como se sabe, a política costuma combinar, desde sempre, certos componentes objetivos com essa subjetiva vontade de querer mudar a realidade. É verdade que as condições históricas e a evolução desta sociedade indicam a abertura de um “novo ciclo”, mas este tampouco se concretizará sem convicção e trabalho inteligente.
O “novo ciclo” não remete apenas à obsolescência das lógicas políticas que marcaram o período anterior, mas também a superar aquilo que o sociólogo Manuel Castell chamou, sem seu momento, de uma “modernização excludente”. O que já não resiste é o modelo de uma sociedade dinâmica na área econômica, mas profundamente desigual e carente de coesão social. Esta modernização excludente tem ganhadores e perdedores, faz da incerteza uma oportunidade para lucrar e não uma condição do mundo contemporâneo que pressiona com urgência por políticas ativas de solidariedade social.
Este novo ciclo político anuncia ventos favoráveis para um período de governos progressistas ou de centro-esquerda, que permita a construção de um país melhor na próxima década. Trata-se de um projeto de longo prazo, marcado pelo crescimento econômico; pela inovação científica, tecnológica e produtiva; pelas políticas ativas a favor da igualdade e eliminação de toda diferença fundada numa discriminação, e por uma ampliação crescente da liberdade das pessoas, entendidas como moralmente autônomas para definir suas próprias formas e estilos de vida. A direita terá que analisar qual é sua própria leitura e inserção neste novo ciclo, sob pena de cair na irrelevância política e eleitoral.
Esta mudança de época também implica um conjunto de novas demandas e expectativas. Crescentes grupos de classe média já não só pedem acesso a bens e serviços como exigem qualidade deles. A organização das cidades, dos bairros, a boa qualidade da vida cotidiana, o acesso à cultura e o respeito e a atenção à diversidade são demandas crescentes de um novo tipo que se manifestam hoje de maneira muito mais incisiva que ontem e sobre as quais devem ser dadas respostas contundentes nesta nova etapa.
Este período histórico que se abre implica uma superação qualitativa do anterior, mas se constrói solidamente sobre este. Ele se edifica sobre a base dos aprendizados históricos e as conquistas democráticas e econômicas da etapa anterior. Um pilar político chave — pelo menos para os socialistas — para este novo tempo é a consciência, obtida através da experiência histórica, de que qualquer processo de transformação social tem como limite a democracia e o respeito aos direitos humanos. Isso implica que deve ser construído sobre maiorias políticas e sociais nítidas. A necessária periodicidade das mudanças exige entender que, para que essas transformações sejam sólidas, devem ser compreendidas e assumidas pela maioria do país.
O governo de Bachelet no “novo ciclo”
Uma ideia atravessa o programa da presidente Michelle Bachelet. É justamente a de um “novo ciclo”. E se a presidente abandonou suas importantes tarefas na ONU foi porque sentiu que tinha algo a fazer no Chile e que isso era qualitativamente distinto do realizado até o momento. A presidente disse com clareza: não será um quinto governo da Concertação, mas o primeiro de um “novo ciclo”.
A composição de seu gabinete expressa essa vontade. Convivem ali distintas lideranças, mas existe um predomínio de uma nova geração política — mistura dos anos 1980 e 1990 — que irrompe com especial força. É impossível impulsionar com credibilidade um “novo ciclo” sem abrir caminho aos protagonistas na condução do processo.
Por outro lado, em sua essência, o programa dá conta dos desafios deste momento. A reforma tributária reconhece que o crescimento econômico alcançado torna possível um esforço de redistribuição, e que o Chile, para além das instabilidades de sua economia, deve continuar no caminho do desenvolvimento. Exceto vozes ofuscadas, instalou-se na consciência de diversos atores do mundo econômico que semelhante mudança pode ser feita sem afetar o investimento nem o dinamismo.
A reforma educativa aponta para o coração de uma sociedade que pretende avançar com todos. Recuperar a educação pública, sua matrícula e qualidade são sinais vigorosos de que se pretende animar um espaço de convivência comum, favorecendo com ele a construção de uma nação integrada socialmente. Novamente, nos últimos meses, a opinião pública expressa por meio de múltiplas vozes que a coesão social é requisito para um desenvolvimento econômico saudável. Também é claro que, por sua natureza, o processo educativo não é o lugar onde é socialmente eficiente que sua organização seja construída a partir de uma lógica mercantil e de lucro.
Por outro lado, o projeto de uma nova Constituição assume que o Chile deve ser capaz de dialogar de forma racional sobre seu marco jurídico constitucional. Não é viável um país que não tem um acordo sobre esta “casa comum” que é a Constituição. Deve-se, em todo caso, desdramatizar este debate e direcioná-lo através de um processo participativo, democrático e institucional. O Chile não deve ter medo desta mudança. As correlações de forças políticas e sociais são conhecidas entre nós.
O principal é que todos se sintam jogando com regras justas, maiorias e minorias, em particular no sistema eleitoral.
Junto com ele, dispor de um marco compartilhado de princípios, direitos e procedimentos dará estabilidade e nos dotará de um sentido de longo prazo que é determinante para alcançar conquistas históricas relevantes. Nossa atual Constituição tem demasiado aroma a Guerra Fria e é herdeira da velha confrontação ideológica dos anos 1960 e 1970. A nova Constituição é, sem dúvida, o desafio mais complexo deste “novo ciclo”, mas é condição essencial para a plena realização deste. Portanto, mais que sua urgência, deveria nos preocupar a legitimidade e a qualidade do procedimento de sua construção.
Para além destes três pilares, governar no “novo ciclo” implica atentar com criatividade para uma sociedade em pleno processo de modernização e secularização. O Chile de hoje observa a emergência de camadas sociais que não aspiram somente a novos bens, mas que também demandam diversidade, qualidade e espaços para o lançamento de diferentes projetos. Virar o jogo não é uma opção interessante nem viável para os chilenos hoje em dia. Porém, mais do mesmo é inaceitável para esta sociedade em movimento. Apropriar-se destas sensibilidades nacionais será fundamental para dar um seguimento exitoso a este novo tempo.
Fonte: O Globo
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