quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Governo faz nova manobra fiscal

Novo discurso, velhas manobras

• Na contramão do que prometeu futuro ministro, Tesouro faz aporte no BNDES e usa artifício fiscal

Martha Beck, Cristiane Jungblut e Cristiane Bonfanti - O Globo

BRASÍLIA - Menos de uma semana depois de o futuro ministro da Fazenda, Joaquim Levy, fazer um discurso em defesa do equilíbrio fiscal e dizer que a prioridade agora é reduzir aportes nos bancos públicos, para baixar a dívida bruta, o governo editou uma medida provisória (MP) que vai na contramão desse propósito. Publicada ontem no Diário Oficial, a MP 661 autoriza a União a conceder crédito de até R$ 30 bilhões ao BNDES. No texto, o governo incluiu ainda mais uma manobra para fechar as contas de 2014. A MP autoriza a equipe econômica a utilizar receitas do chamado superávit financeiro para o pagamento de despesas primárias obrigatórias, como pessoal e previdência, por exemplo.

Para colocar mais recursos no BNDES, o Tesouro Nacional poderá emitir títulos da dívida pública, o que terá impacto sobre o endividamento bruto do governo, que já está em 62% do Produto Interno Bruto (PIB, soma de bens e serviços produzidos no país). De 2009 até agora, o governo destinou mais de R$ 360 bilhões ao banco para dar mais fôlego à instituição e estimular o crescimento. O problema é que isso impactou a dívida bruta, um dos indicadores de solvência mais observados pelo mercado financeiro.

Manobra fiscal
A parte mais polêmica da MP, no entanto, é a nova manobra fiscal de 2014. A parte do superávit financeiro que o governo quer usar para pagar despesas primárias obrigatórias é composta por recursos que estão no caixa do Tesouro, mas foram arrecadados antes de 2014. Eles foram recolhidos com uma destinação específica e não foram gastos. É o caso, por exemplo, de fundos setoriais que o governo contingencia para fazer superávit primário. Até agora, esses recursos só poderiam ser usados para pagamentos da dívida pública. A nova MP flexibiliza a regra e permite que o dinheiro do superávit financeiro seja usado para pagar outras despesas mesmo que elas não sejam vinculadas às receitas.

Na visão de técnicos do orçamento, a MP fere os princípios da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). No parágrafo único do artigo 8º , a LRF estabelece que "os recursos legalmente vinculados a finalidade específica serão utilizados exclusivamente para atender ao objeto de sua vinculação, ainda que em exercício diverso daquele em que ocorrer o ingresso". Na interpretação do subsecretário de Política Fiscal do Tesouro Nacional, Marcus Pereira Aucélio, a MP não fere a LRF:

- Estamos criando mais uma vinculação para o superávit financeiro.

Com a manobra, o governo conseguirá uma ajuda para quitar os gastos de 2014 com a sobra que foi obtida em 2013 e que não podia ser usada. Essa não foi a primeira vez que o mecanismo é usado. Em 2010, o governo se valeu dessa mesma manobra e editou uma MP que permitia o pagamento de servidores com recursos do Fust, que é destinado à universalização dos serviços de telecomunicações no país. No entanto, a ação foi pontual e só valeu para aquele ano. Agora, a mudança é permanente.

O subsecretário adiantou ainda que uma das despesas de 2014 que será paga com o superávit financeiro de 2013 é a da previdência social. Segundo dados da Consultoria de Orçamento da Câmara, o superávit financeiro hoje está em R$ 489 bilhões, sendo que metade disso compõe o colchão de liquidez da dívida pública - parcela de recursos que o governo reserva para administrar o financiamento da dívida.

O novo aporte no BNDES já estava nos planos da equipe do ministro da Fazenda, Guido Mantega. Segundo fontes do governo, a pasta não vê contradição entre a medida e o discurso de Levy, uma vez que o futuro ministro sequer tomou posse. Além disso, a promessa de Levy, alegam os técnicos, é para uma política que será implementada a partir de 2015. Levy não se manifestou sobre a MP. Já Mantega defendeu a medida.

- (A autorização é) para fechar o ano, (para) a demanda para a compra de máquinas, equipamentos, caminhões, ônibus e tratores. Isto é para este ano. No próximo ano, certamente será menor - disse o ministro da Fazenda.

Mas, em evento no Rio, o presidente do BNDES deu a entender, em entrevista a jornalistas, que o aporte poderá ser usado no ano que vem:

- Os R$ 30 bilhões atendem à conclusão do ano. Não se sabe quanto porque depende dos ajustes, mas parte (dos recursos) é para 2015.

Oposição vê inconstitucionalidade
A oposição criticou a manobra fiscal e o novo aporte ao BNDES. O senador e candidato derrotado à presidência Aécio Neves (PSDB-MG) disse que a MP é inconstitucional, argumentando que esse tipo de assunto só pode ser tratado por lei complementar. Para o tucano, a edição da MP é mais uma demonstração do "viés autoritário" do governo e uma atitude de "achincalhe" para com o Congresso.

- Ela (a MP) é mais uma violência. Porque, a partir do momento em que o Congresso se permite ser violentado, obviamente o governo também se permite outros absurdos, como essa medida provisória, que também é inconstitucional. Não pode haver esse remanejamento na utilização de recursos, como propõe essa MP, sem uma lei complementar. Estamos vendo o viés autoritário do governo cada vez mais claro, ou cada vez com menores escrúpulos. Se o Congresso aceitar ser um apêndice do Poder Executivo, lamentavelmente é a democracia que se fragiliza - disse Aécio.

O líder do DEM na Câmara, deputado Mendonça Filho (PE), também criticou o teor da MP 661.

- É mais uma manobra fiscal que contraria todos os requisitos de responsabilidade fiscal e contábil - disse.

O deputado Pauderney Avelino (DEM-AM) destacou que o aporte de mais R$ 30 bilhões ao BNDES é uma contrariedade às declarações da futura equipe econômica. Ele disse que destinar superávit financeiro para pagar despesas primárias obrigatórias contraria a legislação e sinaliza que o governo terá déficit este ano.

- É mais uma manobra fiscal do governo e mostra que deverá haver déficit. É inconstitucional, formal e materialmente. Não pode editar MP para efeito orçamentário. Tem que ser por projeto de lei e tem que demonstrar o que ela vai financiar e não deixar solto, com despesas primárias obrigatórias generalizadas - disse.

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