A última defesa contra a ruptura do processo institucional no caso de uma substituição imprevista de presidentes, como é o caso do impeachment, deveria estar na Constituição da República. O que o Senado fez no julgamento de Dilma Rousseff, porém, foi determinar as penas de acordo com conveniências de maiorias políticas, estendendo a insegurança jurídica agora até mesmo a momentos decisivos e traumáticos do regime democrático.
A questão transcende o mérito de se a então presidente Dilma Rousseff merecia sofrer o impeachment ou se o foi por razões legalmente justificáveis. A Constituição, em seu artigo 52, é muito clara e a língua portuguesa precisa ser torturada para fazê-lo se submeter a interesseiras ambiguidades. A pena para o presidente que sofrer impedimento é a perda do mandato e dos direitos políticos por 8 anos. O Senado pode não gostar do texto da lei, caso em que lhe compete propor mudanças na Constituição, mas não cabe a ele, com base em procedimentos regimentais burocráticos, inventar uma dosimetria casuística e alçar-se acima da Lei Magna.
O presidente do Senado, Renan Calheiros, com a conivência de Ricardo Lewandowski, presidente do Supremo Tribunal Federal, utilizou uma surpreendente "pegadinha" para driblar a Constituição. O resultado foi também uma afronta à lógica. Ao estabelecer votações separadas para as penas, Dilma Rousseff poderá agora exercer qualquer cargo político, inclusive, no futuro, o de presidente.
A decisão põe por terra toda a minuciosa preparação para o julgamento no Senado, igualmente marcada por infindáveis rusgas jurídicas, entre elas a de que o Senado poderia simplesmente arquivar a decisão da Câmara dos Deputados de encaminhar-lhe o processo de impeachment, se julgasse não haver razões para isso. Foram examinados com atenção todos os ritos do impeachment de Fernando Collor e analisadas com lupa a legislação de 1950 sobre a questão. Todos os passos foram rigorosamente traçados de acordo com essas balizas legais. No último momento, essas precauções legais ruíram diante de uma manobra inesperada para o público - e, ao que parece, urdida há algum tempo por senadores do PMDB e PT.
No país da litigância infinita, os defensores da manobra no Senado lembraram o precedente de Collor, que, no entanto, é um caso diferente. Esmagado por denúncias de corrupção, Collor esperou até o último momento para ver se escapava do impeachment e renunciou no dia em que o Senado reuniu-se para julgá-lo. O Senado cassou então seus direitos políticos por 8 anos pelo singelo motivo de que o presidente havia deixado o posto e que a renúncia o livraria de qualquer sanção política. Na época, o STF foi incapaz de decidir, convocou dois juízes do STJ para desempatar o julgamento e ratificou a perda dos direitos políticos.
O drible na Constituição abriu uma avenida por onde desfilarão interesses nada republicanos. O ex-senador Delcídio do Amaral já pediu que seus direitos sejam restabelecidos, após ter sido cassado. Eduardo Cunha, que não pode exercer o mandato por injunção do STF, deverá ter o mesmo fim, mas ainda tem força política suficiente entre seus pares para agarrar-se à excepcionalidade criada pelo Senado ao julgar Dilma. E há uma penca de deputados e senadores envolvidos na Operação Lava-Jato que estão ameaçados de serem ejetados do Congresso pelos mesmos motivos.
A manobra foi certeira. O STF, pelos balões de ensaio lançados, tende a lavar as mãos sobre o que foi decidido. Fazer o contrário poderia ser chamar para si o julgamento do impeachment, algo que procurou escrupulosamente confiar, como cabe, ao Legislativo. O STF poderia ter, assim, de cassar os direitos políticos de Dilma. E, ao fazer isso, colocaria em questão uma votação que o Senado decidiu transformar em duas, abrindo um flanco para se questionasse judicialmente todo o julgamento.
Não há, porém, como se eximir de uma decisão a respeito do caso. PSDB, DEM e PMDB foram ao Supremo pedir que ele barre a ilegalidade. Os inconvenientes de não apontar um rumo são grandes. Não apenas para as futuras perdas de mandatos que advirão como efeito da Lava-Jato, mas também pelo enorme ponto de interrogação sobre a Lei Ficha Limpa diante da subsequente candidatura daqueles que deixaram o cargo e mantiveram, como Dilma, os direitos políticos.
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