terça-feira, 6 de setembro de 2016

O entulho do impeachment - Raymundo Costa

- Valor Econômico

• Os 40 que quebram carros nunca foram tantos na Paulista

O governo Temer tem a clareza de que perdeu - ou está perdendo, para ser mais preciso - a guerra da narrativa do golpe, um discurso que encontrou guarida interna e externamente. O "Fora Temer" embalou os manifestantes que ocuparam as ruas no domingo. Não há como comparar milhares que se reuniram para denunciar golpes, aos milhões que pediram "Fora Dilma". A régua é outra. Mas os protestos cresceram ajudados pelo ar blasé e pelos erros com que o novo governo da República encarou e cometeu em relação às manifestações.

Durante o processo que culminou no impeachment do atual senador Fernando Collor, o então presidente convocou a população para sair às ruas de verde e amarelo, no domingo, contra os que à época, pelos critérios atuais do PT, poderiam ser chamados de golpistas (todos os que defendiam a rescisão do seu contrato eleitoral). Uma provocação que teve uma resposta inesperada para Collor: na data marcada, a população vestiu-se de preto.

Temer reagiu de maneira parecida quando disse, com desdém, que as manifestações eram coisa de umas 40 pessoas que quebram carros. Na boca de Collor soaria a soberba. Mas o governo não parou por aí. Líder de grandes protestos estudantis que antecederam o golpe militar de 1964, o chanceler José Serra foi além e classificou as últimas manifestações de "mini, mini, mini, mini". Provocar manifestantes não parece boa política, assim como deixar a polícia solta para controlar multidões. No pós impeachment, os "40 que quebram carros" nunca foram tantos quanto domingo na avenida Paulista.

O problema do governo hoje já não é não deixar prosperar a tese do golpe, mas revertê-la. Energicamente. O presidente Temer deu a senha na primeira reunião do ministério, realizada entre a votação do impeachment no Senado e seu embarque para a viagem à China, algumas horas depois: golpistas são os que querem rasgar a Constituição cujos parâmetros foram todos obedecidos na destituição de Dilma Rousseff. Para que golpista não se torne uma marca indelével, o governo Temer aposta na única obra que pode assegurar seu reconhecimento na história: a reconstrução da economia.

Essa é a empreitada da gestão Temer, cujo sucesso pode apagar o estigma de golpista. E o ajuste da economia é uma tarefa inconciliável com a ideia da reeleição do chefe do Executivo, suspeita que permanece no ar, apesar de todos os desmentidos de Temer e de seus auxiliares mais próximos. A agenda é conhecida: teto para os gastos públicos, reforma da Previdência e modernização da legislação trabalhista. A pauta é o limite às eventuais ambições de Temer. Mas há outros carros quebrados na pista aguardando a volta de Temer, e um dos mais danificados é o PMDB.

O golpe de mão de Renan Calheiros, que articulou e encaminhou a votação do impeachment sem a inabilitação de Dilma Rousseff para funções públicas à revelia de Temer, é hoje o maior desafio do presidente em relação a seu partido. Um teste será a votação do reajuste do Judiciário, prevista para depois de amanhã. É outro entulho do impeachment que precisa ser removido - à moda da equipe econômica ou à moda do Congresso. Temer botou todas as suas fichas na casa do ministro da Fazenda.

Os despojos do impeachment também são grandes na oposição. A ala majoritária do PT, comandada por Lula, ofereceu para Dilma Rousseff a presidência da Fundação Perseu Abramo. Seria o lugar apropriado para quem tem prazer em lidar com projetos, planilhas e gosta de verificar até a décima casa decimal depois da vírgula, como dizia seu fiel escudeiro Aloizio Mercadante. O comando do PT quer a ex-presidente ao largo. Dilma ainda não se decidiu.

A Mensagem ao Partido, a maior e mais expressiva dentre as alas minoritárias do PT, quer que a presidente destituída de suas funções seja candidata a um mandato eletivo em 2018, pelo Rio de Janeiro, para onde deve primeiramente se mudar, ou pelo Rio Grande do Sul, estado onde se estabeleceu depois de deixar os porões da ditadura militar. Até agora, segundo os aliados que a acompanharam até o fim, Dilma recusa a ideia.

A tendência Mensagem ao Partido tem, entre suas cabeças coroadas, o ex-ministro José Eduardo Cardozo, o advogado de defesa do impeachment, o ex-governador Tarso Genro (RS) e os deputados Paulo Teixeira (SP) e Henrique Fontana (RS). Foram eles que convenceram Dilma que ela devia sua primeira eleição a Lula, mas que a reeleição se dera por mérito exclusivo dela e dos resultados que obteve na sua passagem pela Presidência.

Foi tendo em vista uma candidatura de Dilma em 2018 que a Mensagem ao Partido costurou o acordo com o PMDB de Renan Calheiros para manter o direito de votar e ser votada da ex-presidente, apesar de seu mandato cassado pelo voto de 61 senadores. A corrente liderada por Lula foi contrária ao entendimento, por entender que o pedido de clemência feito por Dilma Rousseff significava a aceitação das regras do jogo e consequentemente enfraqueceria a narrativa bem assimilada do golpe.

Acreditar que Dilma poderia se desvencilhar de seu criador e tocar um governo dela, sem a interferência de Lula no segundo mandato, pode não ter sido o início, mas certamente contribuiu para a ruína da ex-presidente. A Mensagem não costuma fazer boas apostas, como indica o atoleiro em que ajudou a meter Dilma no Congresso. O discurso do golpe é o que resta a Dilma numa campanha eleitoral, que pode ser mais ou menos eficiente dependendo do desempenho do governo Temer. A Mensagem não demonstra a intenção de se desgarrar do PT para aderir ou fundar um novo partido.

O pós impeachment do PT deve ficar mais claro a partir de janeiro de 2017, depois das eleições municipais e do congresso partidário marcado para o início do próximo ano. O partido saiu virtualmente destroçado do impeachment, mas conseguiu - ou está conseguindo - colar em Michel Temer a pecha de golpista.

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