• Diretor sempre teve um olhar agudo sobre o Brasil real
Luiz Zanin Oricchio | O Estado de S. Paulo
A mostra Simplesmente Nelson traça um panorama quase completo da obra do mais importante cineasta brasileiro. Por que “quase”? Porque, em meio a esse percurso pelas obras que dirigiu, produziu ou montou, falta o seu primeiro longa, de importância capital: Rio 40 Graus, de 1955, tido como pioneiro de uma versão tropical do neorrealismo italiano e precursor do Cinema Novo.
Por que ausente? Responde Nelson, ouvido pelo Estado: “Não há cópias de Rio 40 Graus porque o negativo foi destruído. Processo, por isso, a Cinemateca Brasileira, responsável pela guarda do filme, mas a ação está imobilizada na Justiça”.
Consultada, a Cinemateca Brasileira respondeu através de extensa carta com o “histórico do caso”. Em resumo: em 1977, a custódia dos negativos de Rio 40 Graus foi repassada da Cinemateca do MAM (Rio) à Cinemateca Brasileira, com fins de restauro. Entre 1977 e 1978 os negativos originais foram processados, gerando master combinado (imagem e som) e cópia de exibição. Do master, produziu-se um contratipo que garantiu a tiragem de novas cópias. Os descartes dos negativos de imagem e som ocorreram entre 1999 e 2002, pois estavam tecnicamente inutilizáveis e com risco de contaminar outros materiais. A instituição não formalizou esses descartes, na convicção de que a obra estava preservada desde o seu restauro. Em 2005, a Regina Filmes (produtora de Nelson) retirou da Cinemateca os materiais referentes às obras de sua produção, inclusive as matrizes de Rio 40 Graus. Desde 1978, o filme continuou a ser visto em eventos nacionais e internacionais. As informações são de Olga Futemma, diretora da Cinemateca.
É pena mesmo que Rio 40 Graus (1955) não esteja na mostra, pois trata-se do pontapé inicial de uma obra muito extensa e completa, a de um cineasta que jamais deixou de olhar e refletir sobre esse país complexo chamado Brasil. A obra que forma par com Rio 40 Graus é Rio Zona Norte (1957) e esta sim está na Mostra. Seus protagonistas são gente do povo: vendedores de amendoim, soldados, cafetões, sambistas. O ambiente era o das ruas, com filmagens em locações e não em estúdio.
O Nelson que ingressa nos anos 1960 já é o do Cinema Novo e produz uma de suas obras-primas, Vidas Secas (1963), baseada em Graciliano Ramos. “Quando decidi fazer Vidas Secas sabia que aceitava um desafio: adaptar a obra do escritor mais respeitado do Brasil”, admite Nelson. Desafio aceito e vencido. Em imagens cruas, o filme reproduz a luz chapada do sertão; a narrativa é despojada, e o som, às vezes, limita-se ao rangido de um carro de bois. Filme notável, insere-se na crítica radical às condições sociais de um Brasil cheio de esperanças mas também de misérias.
Esse olhar de Nelson sobre o País não se fixa na moldura de um estilo único. Varia. De Vidas Secas, salta para um período mais experimental, com obras como El Justicero (1967), Fome de Amor (1968), Asyllo Muito Louco (1970), Como Era Gostoso meu Francês (1971) e Quem É Beta? (1972). Em O Amuleto de Ogum (1974), Tenda dos Milagres (1977), Na Estrada da Vida (1980) e Jubiabá (1987), vemos um Nelson mais ligado ao “nacional-popular”, forma de sintetizar o neorrealismo inicial em uma linguagem mais acessível ao público. Na Estrada da Vida é rara incursão do cinema pela música sertaneja, muitos anos antes de Dois Filhos de Francisco. Com nova adaptação de Graciliano Ramos, Memórias do Cárcere (1984), Nelson lembra uma história de arbitrariedade para falar de um país que se preparava para o fim de uma ditadura.
Em A Terceira Margem do Rio (1994) e Cinema de Lágrimas (1995), vemos o cineasta enfrentando com criatividade os anos magros do cinema pós-Collor. No primeiro, com uma hibridação inventiva de vários contos de Guimarães Rosa; no segundo, recriando em ficção uma obra teórica sobre o melodrama latino-americano, escrita por Silvia Oroz, que, aliás, é uma das curadoras da mostra, com Breno Lira Gomes.
Nos anos recentes, Nelson Pereira, primeiro cineasta a ser eleito para a Academia Brasileira de Letras, criou filmes interessantes e mais uma obra-prima. Em documentários feitos para a TV, Casa Grande e Senzala (2000) e Raízes do Brasil (2004), fala das obras de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, dois “explicadores” do País. Na ficção Brasília 18% (2006), enfrenta tema quente e obsessivo: “Acho que é um filme bem atual, pois conta uma história de corrupção política em todos os níveis”. A obra-prima é o documentário A Música Segundo Tom Jobim, a mais bela e perfeita homenagem prestada ao Maestro. Cheio de vitalidade, aos 88 anos, Nelson prepara novo filme. Ele, que começou com gente do povo, agora investiga a realeza. Seu novo longa será sobre Pedro II, baseado na biografia escrita pelo colega de Academia, o historiador José Murilo de Carvalho.
A mostra começa hoje, no Cine Caixa Belas Artes, com exibição de curtas e um longa, Rio Zona Norte, seguidos de mesa de debate, às 20h. Participam o diretor Luiz Carlos Lacerda, o ator Carlos Alberto Riccelli e a curadora Silvia Oroz, com moderação da jornalista Maria do Rosário Caetano.
Nenhum comentário:
Postar um comentário