O governo espanhol interveio na Catalunha, um episódio inédito desde a redemocratização do país. O primeiro ministro Mariano Rajoy nomeou a vice-presidente Soraya de Santamaría como governadora da região autônoma, enquanto forças policiais e ministérios passaram a ser comandadas por Madri. O líder catalão deposto, Carlos Puigdemont, evitou a radicalização e defendeu uma "oposição democrática" sem recurso à violência. A intervenção é uma armadilha para os dois contendores. A tentativa de independência catalã, porém, não deve ser um ponto de não retorno entre Madri e Barcelona por um motivo óbvio desde o início: ela divide profundamente os próprios catalães.
Com os catalães divididos, o jogo da pressão separatista de Puigdemont voltou-se contra ele, a ponto de obrigá-lo, depois de tornar o caminho da declaração da independência quase irreversível, a protelações desmoralizantes. O Parlamento catalão só declarou a independência na sexta-feira, horas antes de o Senado espanhol, com o apoio da oposição socialista, decidir pela intervenção. Puigdemont já vinha sofrendo erosão de seu capital político à esquerda, pelas vacilações em pedir rapidamente a chancela dos parlamentares ao resultado do referendo, do qual apenas 42% do eleitorado participou.
Rajoy, do direitista Partido Popular, por seu lado, conduziu mal a questão desde o início. O referendo poderia não ser favorável aos separatistas se não houvesse a repressão em grande escala no dia da votação por parte das forças policiais do governo central. Uma negociação séria teria a chance de tornar o referendo, de resultado então duvidoso, quando o pêndulo não havia de forma alguma se inclinado para os separatistas, em uma consulta cujos efeitos legais poderiam ser discutidos. Isso deixaria aberta a porta de saída para os separatistas, caso fossem derrotados nas urnas, e mostraria, caso vencessem, que Madri fora até o último esforço diplomático para impedir uma solução ruim para ambos.
O uso da força nada resolveu, como era previsto, e acirrou a polarização. Mas Rajoy reverteu parte dos danos com a manobra de convocar eleições antecipadas. Em vez de convocá-la em seis meses, um longo interregno capaz de fomentar os brios catalães, marcou-a para 21 de dezembro, de forma a esvaziar descontentamentos e tentar isolar os separatistas, ao indicar que, para Madri, a melhor solução continua sendo a de devolver o mais rápido possível a decisão da questão para a população local.
Intervenção e eleições antecipadas, porém, são jogadas de alto risco. A interferência de Madri, ao confiscar a autonomia da região, pode inclinar contra o governo central parte do eleitorado que até agora tem dúvidas de que a separação é um bom negócio para a Catalunha. Puigdemont pode se tornar o mártir de uma causa e o será aos olhos da população caso Rajoy dê outro mau passo e peça sua condenação à cadeia por sedição - como pediu ontem a Procuradoria espanhola para todo o governo catalão. Nesse caso, a nova eleição ratificaria o separatismo e o tornaria praticamente inexorável. O governo de Rajoy, envolto em escândalos de corrupção, pode ganhar pontos ao se apresentar como o campeão da unidade nacional, ao não titubear em impedir que um dos pedaços mais ricos da Espanha se desgarre. A intransigência, contudo, pode se voltar contra seus objetivos.
Se o enfrentamento catalão foi um teste ao vivo de quais seriam os obstáculos à possível independência, as forças separatistas tendem a recuar. O maior problema é a divisão dos catalães. Manifestações massivas contra a separação e a reação dos principais sindicatos, favoráveis a novas eleições, indicam que a região estava rachada antes do referendo e continua rachada após a intervenção federal. Outro problema grave é o isolamento a que a Catalunha independente seria submetida. A União Europeia colocou-se inteiramente a favor de Madri. E mais de mil empresas resolveram retirar sua sede de Barcelona, para não ter, entre outras coisas, de enfrentar os riscos para seus negócios da criação de uma nova moeda e das relações comerciais indefinidas com os vizinhos e com a Espanha, que usam o euro.
Os separatistas, que radicalizaram a situação até a beira da ruptura e hesitaram, parecem ter perdido a iniciativa. Mas suas ações levaram o Parlamento espanhol a criar comissão para rever os estatutos da autonomia, o que pode originar um acordo democrático para a questão. São as urnas, porém, que vão decidir o destino da Catalunha, agora imprevisível.
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