Questão regional sufoca outros temas; no poder, socialistas devem vencer, mas sem levar maioria
Lucas Neves / Folha de S. Paulo
MADRI E BARCELONA - Se o brexit parasita a política britânica há três anos, a vida pública na Espanha também tem, há praticamente um ano, um monotema para chamar de seu: a relação a estabelecer com o movimento separatista da Catalunha.
Durante a campanha para as eleições parlamentares deste domingo (28), as terceiras em menos de quatro anos, caminhos distintos convergiram para um só “entroncamento”.
A direita dizia que era preciso sufocar o independentismo, enquanto a esquerda defendia o diálogo, cuidando para não soar afável demais —“não é não”, repetia nos últimos dias o premiê Pedro Sánchez (PSOE, socialista), fechando a porta à possibilidade de uma consulta popular sobre um secessionismo que polariza inclusive na sociedade catalã.
O quase monopólio da questão territorial sobre o debate espanhol teve seus primeiros lances em junho de 2018, quando o governo conservador de Mariano Rajoy, caiu após a aprovação, no Legislativo, de uma moção de censura.
O gatilho foi a condenação do PP (Partido Popular), sigla de Rajoy, por um esquema de propina em contratos públicos que funcionou por três décadas, segundo a Justiça. Para derrubar o líder direitista, os votos dos partidos separatistas da Catalunha mostraram-se essenciais.
Por isso, quando Sánchez tomou o lugar do rival na chefia de governo e reabriu os canais de diálogo com os nacionalistas regionais, a agora oposição conservadora tinha a deixa para atacá-lo: o socialista estaria “pagando” o apoio à moção contra Rajoy com afagos à causa independentista. Daí para os epítetos de traidor da pátria e entreguista foi um pulo.
No começo de 2019, porém, o premiê deixou claro aos aliados catalães de ocasião que não encamparia a principal reivindicação deles: a realização de um plebiscito sobre o adeus da região à Espanha.
A resposta veio rápido: em fevereiro, os partidos locais se juntaram a PP e Cidadãos (centro) para rejeitar a proposta de orçamento anual de Sánchez, que, de mãos atadas, viu-se obrigado a convocar eleições antecipadas —o calendário só previa nova votação em 2020, ao fim da legislatura que assumiu quatro anos antes.
O revés serviu ao menos para que o socialista alardeasse suposta isenção diante da causa catalã. Mas não abrandou o ímpeto da direita em retratá-lo como artífice do dilaceramento espanhol, partidário de uma “nação de nações”.
Não que o próprio Sánchez não tenha também adotado o discurso do medo. Ciente de que a ênfase na agenda social (reajuste do salário mínimo, indexação das aposentadorias pela inflação, aumento das bolsas universitárias...) trouxe de volta à órbita do PSOE eleitores desiludidos com gestões anteriores, o premiê brandiu o espantalho da ditadura de Francisco Franco (1936-75) — cujos restos mortais, aliás, ele mandou exumar de um mausoléu construído por quem o déspota perseguiu.
Para Sánchez, um governo tripartite com PP, Cidadãos e o novato Vox (este, o único radicalmente de direita na coalizão hipotética) despertaria os fantasmas ditatoriais.
Na sexta (26), em seu penúltimo comício, ele lembrou, a título de advertência, as eleições surpreendentes de Donald Trump e Jair Bolsonaro, além do susto que a ultradireita finlandesa deu há pouco nos social-democratas. “O perigo existe e é real.”
Em meio ao fogo cruzado de paixões, mais do que de propostas, pouco espaço sobrou para a discussão econômica. Nessa rubrica, a Espanha hoje não vai mal: o déficit público deixou de ser o maior da Europa, e o país cresce a níveis mais saudáveis do que seus vizinhos.
Há, entretanto, sinais insistentes de desaceleração. O PIB subiu 3% em 2017 e 2,5% no ano passado. Para 2019, a previsão de alta da Comissão Europeia é de 2,1%, num viés de baixa que se manteria em 2020 (1,9%). Além disso, a taxa de desemprego estacionou na casa dos 15%, e explode para 32% no segmento da população que tem até 25 anos.
Segundo o professor de ciência política Joan Botella, da Universidade Autônoma de Barcelona, a onipresença do tema territorial no debate espanhol se explica pelo poderio econômico (segundo maior PIB do país) e demográfico (idem) da Catalunha.
Também é preciso considerar os ecos ainda fortes da crise de 2009, quando a constatação de que “a Europa já não era tudo aquilo” estimulou a crispação identitária e deu fôlego ao nacionalismo regional.
Por fim, avalia o pesquisador, trata-se, para os partidos, de uma linha de distinção útil em um momento no qual balizas ideológicas de lado a lado se confundem —os programas econômicos, por exemplo, são bastante parecidos.
De acordo com Botella, pesquisas mostram que o separatismo está longe do topo no ranking de temas que os espanhóis consideram importantes nesta eleição.
“A sociedade admite com mais facilidade a pluralidade cultural e a variedade de línguas do que a elite política. Para o impasse catalão, a maioria prefere uma solução negociada a uma medida imposta por Madri.”
Candura que é rechaçada pelo Vox, a sigla de ultradireita que defende linha dura com o movimento secessionista e ameaça, se eleita, declarar ilegais os partidos que o integram.
A agremiação, criada há cinco anos por dissidentes do PP, deve ser a primeira de sua coloração ideológica em 40 anos a ingressar no Parlamento espanhol. Pesquisas indicam que pode receber neste domingo em torno de 11% dos votos, o que se traduziria em cerca de 30 cadeiras e o quinto lugar no ranking partidário.
Mas há indícios de que o azarão pode ir além, sobretudo se o séquito do líder Santiago Abascal nas redes sociais comparecer às urnas —o voto é facultativo no país.
Ausente dos meios tradicionais (foi impedido pela Justiça de participar dos debates televisivos por não ter representação parlamentar em nível nacional), o Vox impera na internet.
No último mês, liderou com folga as interações (curtidas, comentários, repostagens) de usuários do Twitter com perfis de partidos políticos, apesar de ser o menos seguido entre os grandes. Só na última semana, gerou três vezes mais buscas no Google do que qualquer outra legenda.
As sondagens para este domingo dão a liderança ao PSOE, com 29-30%, seguido por um PP que, se confirmado o prognóstico de 17% ou mesmo um pouco mais, perderá quase metade de sua bancada. Em terceiro e quarto lugares surgem, respectivamente, Cidadãos (14%) e Podemos (esquerda radical, 12-13%).
É fato que, ao contrário do que se viu na França e na Itália nos últimos anos, as forças veteranas de esquerda e de direita seguem na dianteira na Espanha. Mas como nem uma nem outra deve ter cacife para governar sozinha, alianças precisarão se constituir.
O PP fez acenos ao Vox —repetindo a parceria, completada pelo Cidadãos, que encerrou há pouco quatro décadas de hegemonia socialista na Andaluzia.
O PSOE conta com o Podemos, mas isso não deve bastar para alcançar maioria. Em franco deslocamento para a direita, o centrista Cidadãos tem se mostrado arisco à ideia de um alinhamento. Sobrariam os partidos nacionalistas (catalães, mas também bascos e canários), como mostrado acima, volúveis.
Se a vitória socialista se confirmar, projeta Botella, o consórcio progressista não deve se completar antes de outubro deste ano. É quando se espera que saia a sentença dos 12 líderes catalães agora julgados pela organização, em 2017, de um plebiscito ilegal sobre a separação da região.
Dependendo do que a Justiça decidir, o movimento independentista pode optar pela ruptura total com Madri, recusando-se a sustentar um hipotético governo Sánchez 2.0. O impasse alimentaria o clamor por novas eleições gerais, como aconteceu no biênio 2015-2016.
Ou seja, a Espanha ainda vai ficar por algum tempo dando volta na rotatória da independência catalã.
ANTES SENSAÇÃO, CIDADÃOS CHEGA ENFRAQUECIDO
Promessa de renovação da política espanhola nas eleições da última década, o Cidadãos (centro) chega à votação deste domingo (28) acometido por dores de crescimento.
Depois de ameaçar a supremacia dos tradicionais PSOE (socialistas) e Partido Popular (direita), parece ter tocado um teto. Ao abandonar o tom conciliatório de seus primórdios (2005), periga até encolher.
Há um ano, seu líder, Albert Rivera, aparecia no topo das intenções de voto ou competindo seriamente por ele.
Recém-eleito pelo Fórum Econômico Mundial, de Davos (Suíça), como um dos cem jovens líderes mundiais a acompanhar, adotava discurso moderado, cuidadosamente centrista –se dizia pronto, se eleito, a governar tanto com progressistas quanto com conservadores.
Parecia contar com o desgaste do governo Mariano Rajoy (PP) para se consagrar, em 2020. Até que veio a moção de censura que derrubou o líder direitista, mesmo sem o endosso do Cidadãos, e alçou de volta ao poder o PSOE.
A reviravolta forçou uma mudança de estratégia. Rivera foi ao ataque para tentar se firmar como o chefe de fileira da oposição ao socialismo.
Absteve-se na votação sobre a exumação dos restos mortais do ditador Francisco Franco (1892-1975) de um mausoléu erguido pelo trabalho de republicanos, que o militar combateu. Mais adiante, acusou o novo primeiro-ministro, Pedro Sánchez, de plágio em sua tese de doutorado.
A guinada à direita espantou os simpatizantes progressistas que vinham aderindo ao Cidadãos.
A gota d’água, para muitos, foi o sinal verde de Rivera à aliança com o ultradireitista Vox após a eleição regional da Andaluzia, no fim de 2018 –o PP completa a frente de direita ali.
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