A política como vacina – Editorial | O Estado de S. Paulo
Está na política a elaboração de saídas não apenas para os problemas decorrentes da epidemia, mas também para a profunda crise que o País terá que administrar
O momento que o País atravessa é crítico para a manutenção da democracia. “A se manter o cenário atual, não vejo como se possa evitar um desastre econômico, social e humanitário. É um caminho que pode levar à ruptura política”, disse o historiador José Murilo de Carvalho, em reportagem do Estado sobre os impactos da epidemia de covid-19 na vida política do País.
O risco não é desprezível. A rede bolsonarista, com o próprio presidente Jair Bolsonaro à frente, dedica-se diariamente a atacar as autoridades que assumiram a responsabilidade de enfrentar a epidemia com medidas duras de restrição econômica e isolamento social. A intenção é disseminar o medo do caos, de modo a criar uma atmosfera favorável a soluções liberticidas. Decerto embala os sonhos bolsonaristas o exemplo da Hungria, que acaba de conceder poderes ilimitados ao premiê ultradireitista Viktor Orbán, com a desculpa de que isso é necessário para conter a disseminação do novo coronavírus.
Ao mesmo tempo, a gravidade da situação, somada à atuação irresponsável e belicosa do presidente Bolsonaro, está provocando uma raríssima articulação política no País. Políticos de diversas tendências têm deixado momentaneamente suas divergências de lado para somar esforços em nome da imperiosa necessidade de salvar vidas e dar condições para que a população atravesse essa provação sem grandes privações.
Um exemplo recente disso foi a reação do governador de São Paulo, João Doria, a um elogio maroto feito pelo ex-presidente Lula da Silva, um de seus maiores rivais, a respeito de sua atitude firme na crise. É evidente que Lula só estava interessado em usar Doria como escada para atingir Bolsonaro, mas mesmo assim o governador paulista não deixou passar a oportunidade para enfatizar a necessidade de união de forças distintas: “Temos (Doria e Lula) muitas diferenças, mas agora não é hora de expor discordâncias. O vírus não escolhe ideologia nem partidos”, escreveu o governador no Twitter.
Para o cientista Marco Aurélio Nogueira, o comportamento hostil de Bolsonaro isola o presidente e reforça o protagonismo do Congresso, que já se verificava antes mesmo da epidemia, além de estimular as forças democráticas – liberais, social-democratas e da esquerda moderada – a “encontrarem um eixo programático de articulação”. É o que acontece em democracias maduras diante de crises profundas como a que atravessamos. “Essa possibilidade de articulação será o principal antídoto contra o acirramento das relações institucionais e sociais”, disse o professor Marco Aurélio Nogueira.
Assim, está na política a vacina contra a epidemia de autoritarismo e impostura que o presidente Bolsonaro deflagrou no País desde sua eleição – considerada pelo historiador José Murilo de Carvalho uma calamidade anterior à do coronavírus. Do mesmo modo, está na política a elaboração de saídas não apenas para os problemas imediatos decorrentes da epidemia, mas também para a profunda crise que o País terá que administrar quando passar a fase mais aguda da doença.
“É hora da política séria, objetiva, com letra maiúscula”, opinou o fundador do movimento RenovaBR, Eduardo Mufarrej. “A sociedade precisa cobrar que as lideranças do País deixem as disputas por espaço de lado e se concentrem em construir soluções em conjunto. Vírus não respeita fronteiras, não distingue raças, não se importa com ideologias.”
É esse o grande esforço que o País deve empreender hoje: superar a polarização que tanto tem marcado o ambiente político desde a campanha presidencial de 2018 e reavivar a política civilizada, reaprendendo a ouvir vozes divergentes e a aceitar o que a maioria decidir, dentro das regras democráticas e com respeito às instituições. Isolar Bolsonaro não basta; é preciso desmoralizar a ideologia deletéria que o sustenta. Para isso, a política deve ser resgatada do limbo em que foi atirada em 2018 pelo bolsonarismo e valorizada como único meio de impedir que o País complete a obra de autodestruição que petistas e bolsonaristas, há tempos, estimulam com tanto ardor.
Violações de direitos humanos – Editorial | O Estado de S. Paulo
Explosão de denúncias mostra que governo não tem consciência da importância do soft power
Entre janeiro e dezembro de 2019, primeiro ano de governo do presidente Jair Bolsonaro, foram apresentadas 35 denúncias contra o Brasil no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU). E, para 2020, as estimativas são de que o número será bem maior. Feitas por organizações não governamentais (ONGs) internacionais e brasileiras, ativistas políticos, entidades religiosas e líderes indígenas, as denúncias envolvem violações ao meio ambiente, legalização da mineração em terras indígenas, assassinatos de líderes indígenas, crescimento de incêndios na Amazônia, desqualificação de programas de educação sexual para adolescentes e o desmanche, na máquina governamental, de conselhos paritários e órgãos consultivos com representantes da sociedade civil.
Há um mês, por exemplo, quando assinou um projeto de lei que regulamenta a geração de energia elétrica e a mineração em terras indígenas, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que esse era um antigo “sonho”. Assim que o projeto foi enviado ao Legislativo, o relator da ONU para o meio ambiente, David Boyd, pediu que sua tramitação fosse suspensa.
Além dessas áreas, está aumentando o número de denúncias que vinculam as violações dos direitos humanos a iniciativas governamentais que permitem a apropriação dos chamados espaços cívicos por grupos religiosos, atacam ONGs e reduzem garantias fundamentais.
Desde a redemocratização, em 1985, nunca o Brasil foi alvo de tantas críticas e denúncias no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas e em entidades congêneres. Segundo denúncia feita ao órgão pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), atualmente há mais de 800 projetos de lei em tramitação que atentam contra o arcabouço legislativo criado pelo Brasil ao longo do período democrático.
No final de fevereiro, a alta-comissária da ONU para Direitos Humanos, Michelle Bachelet, afirmou que algumas iniciativas do governo Bolsonaro estavam “deslegitimando o trabalho da sociedade civil e dos movimentos sociais”. Em seguida, Bachelet incluiu o Brasil na lista dos cerca de 30 países que se encontram numa “situação preocupante” com relação a temas de direitos humanos.
Assim que as denúncias começaram a pipocar no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, o Itamaraty adotou uma posição defensiva, procurando refutá-las por meio de procedimentos diplomáticos. Com o tempo, porém, o tom das respostas aumentou e o governo passou a acusar Bachelet de não levar em conta “dados e evidências atualizados”. No caso das críticas feitas pela relatora da ONU para o direito à alimentação, Hilal Elver, no sentido de que o governo teria “desmantelado o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o Itamaraty alegou que elas foram feitas com base em “informações enganosas”.
Além disso, há meses o Itamaraty tem afirmado que não mais aceitará, nos projetos de resolução da ONU, referências a expressões como direitos reprodutivos. A justificativa é de que elas poderiam viabilizar a legalização do aborto.
A explosão de denúncias contra o Brasil no Conselho de Direitos Humanos da ONU é mais uma evidência de que o governo Bolsonaro não tem consciência da importância do soft power num mundo globalizado. Se o chamado hard power pressupõe recursos tangíveis, como o poder bélico e o poder econômico, o soft power engloba aspectos sociais e culturais. Envolve recursos intangíveis, com base na cultura, na imagem e na forma de comunicação de um país no cenário internacional.
Conceitos como democracia, direitos humanos, pluralidade e sustentabilidade, vistos como sendo globalmente positivos, são fundamentais para a afirmação do Brasil no cenário mundial. Sem soft power, o País só tende a se isolar, deixando com isso de atrair investimentos e conquistar mercados. Infelizmente, a sucessão de sérias violações de direitos humanos deixa claro para qual destino Bolsonaro pretende levar o País.
O MEC e a epidemia – Editorial | O Estado de S. Paulo
Com avanço da covid-19, problemas do sistema de ensino podem se agravar ainda mais
Diante do avanço da pandemia do coronavírus e das pressões dos governos estaduais e municipais, que são os responsáveis pela gestão de quase todas as redes escolares do País, as autoridades educacionais finalmente autorizaram as instituições de ensino fundamental, médio e superior públicas e privadas a não cumprir em 2020 o mínimo legal de 200 dias letivos de aulas presenciais.
Baixada na quarta-feira passada por medida provisória (MP) assinada pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo ministro da Educação, Abraham Weintraub, essa decisão era esperada. Além de muitos governadores já terem ordenado a suspensão das aulas, com aval dos Conselhos Estaduais de Educação, tão cedo não haverá condições de retorno à normalidade na vida social. Foi por isso que o MEC não tratou do problema da reposição de aulas na MP, uma vez que sua cúpula não esconde o temor de que o próximo semestre letivo também já esteja comprometido.
Ao acolher a reivindicação de escolas e universidades públicas e privadas e dos secretários de Educação, que vinham criticando a morosidade de Bolsonaro e Weintraub, o governo aproveitou a ocasião para agir em causa própria. Assim, incluiu na MP a autorização para que os cursos de medicina, farmácia, enfermaria e fisioterapia antecipem a formação dos alunos das turmas mais avançadas, desde que os formandos tenham cumprido a carga mínima de cada curso. A decisão foi tomada para permitir que eles possam ocupar o lugar dos profissionais da área de saúde que estão sendo afastados por terem sido contaminados.
Se por um lado a MP tratou de uma questão importante num momento de avanço da pandemia do coronavírus, por outro ela deixou de lado uma questão polêmica. As redes estaduais de ensino básico gozam de autonomia, do ponto de vista jurídico, e têm competência legal para suspender aulas. Reclamavam, porém, da falta de articulação nacional no plano administrativo, especialmente no que se refere à possibilidade de substituição do ensino presencial pelo ensino a distância. A ideia foi cogitada pelo MEC antes de baixar a MP.
Essa é uma antiga aspiração dos grandes grupos privados do setor educacional, muitos dos quais com ações cotadas em bolsa de valores, que veem no ensino a distância uma forma de conter gastos com pagamento de professores. A ideia sofre, no entanto, fortíssimas críticas dos especialistas e até dos proprietários de pequenas escolas particulares. Do ponto de vista pedagógico, a qualidade do ensino a distância é muito inferior à do ensino presencial, o que prejudica a alfabetização e a formação dos estudantes, advertem os especialistas.
Por isso, quando acenou com aquela possibilidade, o MEC foi duramente criticado. As pequenas escolas particulares, por exemplo, lembraram que não têm estrutura para atuar na modalidade de aulas a distância. A situação é ainda mais grave na rede pública de ensino básico, onde a maioria das escolas não dispõe de recursos financeiros e tecnológicos para lidar com plataformas digitais online. E, ainda que tivessem, por razões financeiras muitos alunos não têm nem celular nem computador conectado com a internet para fazer atividades escolares. Além disso, não há metodologia, ainda mais em caráter emergencial, que no ensino a distância garanta aprendizagem com um mínimo de qualidade para crianças em processo de alfabetização, dizem os especialistas.
Se a má qualidade do sistema brasileiro de ensino já era um dos principais gargalos do País, com o avanço da epidemia do coronavírus os problemas podem se agravar ainda mais. Quando anunciou que baixaria MP que suspende o mínimo legal de 200 dias letivos de aulas presenciais, o governo fez o que se esperava. Mas, ao acenar com uma possível inclusão da substituição de aulas presenciais por aulas a distância, ele, mesmo tendo voltado atrás, gerou confusão e aumentou ainda mais o risco de desorganização do sistema de ensino.
Governo indeciso prejudica os informais – Editorial | O Globo
Medida mais urgente do ponto de vista social esbarra na burocracia e em temores do presidente Bolsonaro
O governo tem demonstrado razoável capacidade de formulação de medidas para reduzir os efeitos das ondas de impacto recessivas geradas pela paralisação global decorrente da pandemia do coronavírus. Parece ter havido alguma perplexidade no início, mas o pedigree liberal da equipe econômica não impediu que fosse entendido ser imperioso criarem-se programas para destinar dinheiro público em grande volume à saúde, a pessoas e a empresas, a fim de se cuidar dos doentes e impedir uma crise social em meio a uma depressão econômica.
Em entrevistas coletivas, ministros e presidentes de bancos públicos, incluindo o BC, alinharam programas destinados a atacar grandes focos da crise: colocar dinheiro nas mãos de dezenas de milhões de trabalhadores informais cuja fonte de renda secou; e apoiar as empresas, principalmente as menores, para que evitem demitir, seja com a transferência de dinheiro do Tesouro para ou pela oferta de crédito abundante e barato.
Mas surgiu uma peculiaridade negativa brasileira: é muito mais fácil o governo anunciar ações do que executá-las, devido à atávica burocracia nacional, uma questão que se torna dramática quando se trata de salvar vidas, manter empregos, preservar renda. Nesta crise, o caso emblemático é a especial lentidão com que tramita no circuito entre Palácio do Planalto, Ministério da Economia e outras pastas a mais urgente das medidas: a distribuição mensal, por três meses, de um cheque de R$ 600 para informais como um todo, uma população que, a depender do critério de contabilização, pode chegar a quase 50 milhões de pessoas. Perto de cinco vezes a população de Portugal.
Entre eles, gente que já está enfrentado problemas para se alimentar, sem exagero e pieguice. Reportagem do GLOBO de ontem mostrou que na região da central de abastecimento da cidade, Ceasa, cercada por 18 favelas, tem aumentado o número de pessoas que vão no fim da tarde em busca de restos de frutas, legumes etc. A “xepa”.
Esta ajuda imprescindível, que pode chegar a R$ 98 bilhões, tem enfrentado dificuldades na tramitação difíceis de serem justificadas por motivos plausíveis. O Congresso, trabalhando de forma remota, como muitas empresas, aprovou o projeto, que havia sido anunciado em 18 de março. Bolsonaro afinal sancionou a lei na quarta, 1º de abril, mas o ato, que deveria ter sido logo publicado no Diário Oficial, esperou até ontem no início da noite.
Além da burocracia, haveria outra causa da lerdeza: medo do presidente de cometer crime de responsabilidade por contrariar a legislação fiscal, o que levou Dilma Rousseff ao impeachment. Preferia esperar a aprovação da “PEC do orçamento de guerra”, para ter mais segurança. Mas é incompreensível, porque o governo conta com decisão liminar do ministro do Supremo Alexandre de Moraes, que permite ao Executivo desrespeitar esta legislação. O país, afinal, está sob “estado de calamidade” aprovado pelo Congresso. A gravidade da situação não permite essas indecisões.
Sem estoques de insumos, saída é apelar para indústria nacional – Editorial | O Globo
País precisa de grande quantidade de materiais, mas fornecedores externos não atendem à demanda
Se já era crítica a disponibilidade de equipamentos de proteção individual para os profissionais de saúde, a situação ficou ainda pior. Ontem o Ministério da Saúde informou que estão zerados os estoques após a distribuição de 40 milhões de itens a estados e municípios. O problema poderia ser sanado por meio de compras emergenciais, mas essa opção parece cada vez mais distante. O governo pretendia adquirir 720 milhões de materiais como máscaras, gorros, luvas etc. Porém, não há fornecedores — o mundo todo necessita desses insumos.
Para agravar o quadro, mesmo as compras que pareciam encaminhadas estão caindo. Na China, nosso maior parceiro comercial e um dos países que conseguiram conter a epidemia, fornecedores se dizem sem condições de atender à demanda. Mesmo porque os Estados Unidos, onde a doença atingiu escala severa, se encarregaram de zerar os estoques. Segundo o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, os americanos mandaram 23 aviões à China para transportar o material.
O problema não se resume aos equipamentos de proteção individual. Diz respeito também aos respiradores, fundamentais no tratamento dos casos graves da Covid-19, porque esses pacientes têm dificuldade de respirar. Como afirma Mandetta, “você pode ter o PIB do país e dizer: eu quero comprar. A fábrica não consegue te atender. O mundo inteiro também quer”.
Tem-se, portanto, uma equação que parece não fechar. Por um lado, os equipamentos de proteção são essenciais para evitar que os profissionais de saúde se contaminem, o que já vem ocorrendo não só no Brasil, mas em todo o mundo — não à toa a categoria ganhou justo protagonismo devido à abnegação na luta contra a pandemia do novo coronavírus. É impensável que se possa deixar esses profissionais expostos. Por outro lado, como diz o ministro, mesmo que se tenha dinheiro, não se tem o produto, porque simplesmente não há quem o forneça.
A equação só se resolverá com a ajuda da indústria nacional. O Brasil tem um parque diversificado, com capacidade para suprir demandas do país. Há setores que estão operando em ritmo reduzido, por motivos óbvios: medidas de contenção fecharam lojas, tiraram pessoas das ruas. Um microempresário de Juiz de Fora que está com a fábrica ociosa se ofereceu para produzir máscaras. Tem equipamentos e mão de obra. Precisava de matéria-prima. Ela começou a chegar por meio de doações, como mostrou o “Jornal Nacional”. Não há dúvida de que existem outros exemplos país afora. Por óbvio, Mandetta não deve se ocupar disso, mas o país tem um gabinete de crise, interdisciplinar, que pode coordenar esses esforços. Não se questiona a capacidade dos brasileiros em superar desafios.
Reduzir incertezas – Editorial | Folha de S. Paulo
Decisões como restringir circulação devem ser embasadas com dados transparentes
Há seis meses, seria tachado de louco quem dissesse que cerca de metade da humanidade estaria hoje sujeita a restrições de ir e vir, trabalhar e divertir-se. Imprevisível, a Covid-19 ameaça a saúde de milhões de pessoas e também corrói a confiança, sem a qual a sociedade não se estabiliza nem prospera.
Reclusos em casa —ou sob risco de ser confinados—, os estudantes enfraquecem seus laços duradouros com o aprendizado, e os trabalhadores, com as tarefas profissionais. A renda se torna uma inconstância perturbadora. O horizonte turva a visão dos empreendedores, que deixam de arriscar-se em atividades que elevam o emprego.
Enquanto cientistas aprendem a lidar com o novo coronavírus, governantes navegam águas pouco mapeadas da gestão pública. Um de seus objetivos deveria ser justamente o de reduzir, o quanto possível, a catadupa de incertezas que a crise faz jorrar sobre a população.
Ditaduras, como a chinesa, trancam dezenas de milhões em seus lares, ou em instalações de isolamento, sem dar satisfação sobre quais parâmetros justificam a ordem de recolher nem sobre quanto tempo durará. Democracias, como a brasileira, não podem agir assim.
Nossas autoridades, decerto porque foram pegas de surpresa, têm decretado o fechamento de atividades escolares e empresariais em praticamente todo o Brasil ainda sem o devido cuidado de expor amplamente os dados e as projeções que embasam as suas decisões.
Em São Paulo, por exemplo, o decreto do governador João Doria (PSDB) que fechou atividades não essenciais até o próximo dia 7 estará sujeito a ser estendido ou reformado a depender da evolução de quais indicadores objetivos?
Como as restrições à circulação buscam evitar o esgotamento da capacidade hospitalar, seria justo que governos atualizassem e divulgassem diariamente a que distância estamos da saturação. Deveriam ser transparentes também ao informar que tipo de medidas e graus de intervenção serão adotados caso essa distância se aproxime ou se afaste de valores críticos.
Outra providência urgente é que as autoridades revelem as suas projeções sobre a evolução da epidemia, os modelos que as produzem e os dados que as alimentam a fim de que a comunidade científica possa exercer escrutínio à luz do sol.
O fechamento de escolas públicas sem nenhuma data prevista para a retomada das aulas nem capacidade para que as crianças recebam instrução a distância tornou-se também um grande déficit de informação e prestação de contas que precisa ser resolvido logo.
A sociedade brasileira mostra-se solidária e disposta a mobilizar-se para proteger os vulneráveis. Mas o esforço não pode ocorrer às cegas.
Epidemia subterrânea – Editorial | Folha de S. Paulo
Sem notificação adequada, autoridades pilotam às cegas um bólido em aceleração
À medida que progride a síndrome respiratória Covid-19, acumulam-se indícios de que avança em ritmo analogamente epidêmico a subnotificação da doença.
Números internacionais causam espanto não só pela marca de 1 milhão de infectados como pela dispersão inverossímil nas razões entre casos e óbitos, a sugerir que muitas nações não logram captar a dimensão correta do flagelo.
Como explicar que países europeus com nível de renda similar apresentem proporções tão díspares? Na Alemanha sucumbe apenas 1,2% dos que contraem o coronavírus, contra chocantes 11,9% na Itália.
Diferenças nos respectivos sistemas de saúde poderiam explicar parte dessa variação, não toda ela.
No Brasil não poderia ser diferente, ou pior, dada a precariedade da estrutura de vigilância. Aqui faltam de modo gritante testes para diagnóstico do Sars-CoV-2 e pessoal qualificado para executá-los.
No estado de São Paulo, epicentro da epidemia, o principal laboratório público —Instituto Adolfo Lutz— tem represados 16 mil exames por concluir. Mas tem capacidade para apenas 1.200 por dia, e os pedidos de hospitais e unidades do SUS aumentam a cada dia.
Esta Folha registrou que vários cemitérios paulistanos recebem a cada dia entre 30 e 40 corpos de prováveis vítimas da Covid-19, mas sem confirmação por testes.
Outro indício de subnotificação surgiu com o salto de casos de síndrome respiratória monitorados pela Fiocruz. Da média histórica de 250 internações por semana, na primeira quinzena do mês passado já eram mais de 2.000 e, duas semanas depois, quase 6.000 (houve ligeira desaceleração desde então, aponta a entidade).
Há duas providências mais urgentes para estancar a sangria de confiabilidade nos dados. A primeira é aumentar de forma vertiginosa a testagem; nesse sentido, o anúncio da chegada de 500 mil exames sorológicos da China, primeiro lote de 5 milhões de unidades até o final de abril, é auspicioso.
A outra prioridade é padronizar nacionalmente o conceito de casos suspeitos a notificar e testar, pois existe excessiva variação de critérios entre estados e municípios. Cabe ao Ministério da Saúde coordenar essa sistematização.
Quanto aos testes, o governo paulista poderia dar o exemplo e informar diariamente ao público quantidades disponíveis, amostras recebidas, exames ainda em processamento e resultados obtidos.
Medidas corretas de amparo aguardam o teste da execução – Editorial | Valor Econômico
Há R$ 442,6 bilhões para preservar empregos, sustentar trabalhadores informais e apoiar com crédito e diferimento de impostos as empresas
A rede de proteção contra a destruição de empregos e renda provocada pelo coronavírus já foi quase toda ela delineada e aprovada, sob pressão do Congresso e das circunstâncias da quarentena. As medidas são coerentes, vão na direção certa e têm peso para fazer a diferença: até agora são R$ 442,6 bilhões para preservar empregos, sustentar trabalhadores informais e apoiar com crédito e diferimento de impostos as empresas, em especial pequenas e médias, na difícil transição.
A cifra não inclui os recursos destinados à saúde nem as injeções de recursos via liberação no compulsório nos bancos (R$ 200 bilhões), a disponibilidade de linhas de crédito revigoradas na Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e BNDES (R$ 213 bilhões), nem a disponibilidade para emprestar por bancos estatais e privados, decorrente da redução das exigências de capital de proteção. O pacote indireto de apoio montado pelo Banco Central, quando e se for executado na íntegra, injetaria R$ 1,2 trilhão em liquidez no mercado.
Os apoios concebidos contemplam as principais preocupações com a virtual paralisia de setores inteiros da economia - em primeiro lugar, serviços -, a interrupção abrupta do fluxo de renda para a população e a sobrevivência dos empregos que, por sua vez, depende das empresas, milhares delas ameaçadas de extinção. Haverá financiamento para que elas mantenham empregados e dinheiro da União para cobrir o corte integral ou parcial dos salários (25%, 50%, 75%) por meio da cobertura do seguro desemprego de até 2 salários mínimos (R$ 2.090). Para amenizar a redução dos salários há R$ 55 bilhões e outros R$ 40 bilhões serão emprestados a companhias de pequeno e médio porte, as que mais empregam, para manutenção da mão de obra.
O maior programa de assistência, de R$ 98 bilhões por três meses, é inédito no país - ele procura amparar todos os trabalhadores sem carteira assinada, autônomos, intermitentes ou quem realiza serviços esporádicos, que não contam com proteção alguma do Estado, não tem um colchão de renda para enfrentar dificuldades e que neste momento viram desaparecer até mesmo suas precárias fontes de sustento. Pelas contas dos sociólogos do Ipea, o apoio de R$ 600 aos informais abrange um universo de 36,4 milhões de famílias, ou 117 milhões de pessoas - nada menos que 55% da população brasileira (ver artigo ao lado).
Pressão política de todos os lados, principalmente do Congresso, aprimoraram as medidas que tardaram a ser cogitadas para combater a crise trazida pelo coronavírus - até há pouco, o ministro Paulo Guedes julgava que o vírus poderia ser atacado com reformas. A ideia inicial da equipe econômica era aproximar a renda a ser oferecida à do Bolsa Família, R$ 200. A intervenção de deputados e do presidente da Câmara, elevou o valor a R$ 500 e o governo deu seu aval para R$ 600.
Para um governo cuja principal tarefa tem sido a de cortar despesas, gastar recursos não deve ser um exercício fácil, ainda mais quando centenas de bilhões de reais serão despejados para conter os efeitos daquilo que o presidente da República diz que é uma “gripezinha”. De qualquer forma o pacote, necessário e que pode ser aprimorado ao longo do percurso, pode, se for ágil e eficaz, se revelar um antídoto à queda de popularidade de Bolsonaro. O presidente tem sancionado as medidas, ainda que praguejando contra os governadores e suas quarentenas.
A dosagem final das medidas, no entanto, tinha poder para unir ao redor do governo todas forças que Bolsonaro tem antagonizado, de governadores à oposição. Há pelo menos R$ 22,2 bilhões para os Estados, na forma de suspensão de pagamento de dívidas e sua reestruturação, e possivelmente mais recursos estão a caminho. Ainda que as receitas do Estado sejam finitas e as carências sociais, enormes, não há camada relevante do tecido econômico que não tenha sido amparada - até mesmo os bancos privados o foram.
Apesar de escaramuças no planejamento das medidas, o teste pelo qual elas serão julgadas é o de sua execução. O Brasil é um continente, com ao menos 38 milhões de pessoas à margem de direitos e deveres sociais mínimos, muitas delas sem contas bancárias. Será preciso recorrer à bem estabelecida rede de proteção social, amparada pelo Cadastro Único e em ação por quase duas décadas, o programa Bolsa Família. A criatividade tecnológica, poderá auxiliar, como complemento, a capturar parte dos milhões de cidadãos que terão pela primeira vez direito a algum alívio oficial em uma crise. É importante que dê certo.
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