sexta-feira, 3 de abril de 2020

César Felício - A simulação presidencial

- Valor Econômico

Inépcia do governo em temas sociais é perturbadora

Os trabalhadores autônomos e informais que anseiam pela ajuda de R$ 600 precisam respirar fundo. O histórico de inépcia do governo Bolsonaro em relação a temas sociais é perturbador.

Parece que faz muito tempo, mas foi há poucas semanas, em janeiro, que se constatou que os brasileiros que cumpriam as exigências da nova reforma da Previdência para se aposentar não conseguiam fazê-lo, porque o INSS não havia se preparado para alterar seus parâmetros na concessão dos benefícios. O gargalo era a falta de mão de obra, porque a autarquia não repôs o quadro de funcionários que tinha se aposentado nos últimos anos. O principal sistema de seguridade social travou.

No ano anterior, o Ministério da Cidadania anunciou a concessão do décimo-terceiro salário para os beneficiários do Bolsa Família, mas não havia uma previsão clara de receita para garantir este pagamento. A solução encontrada foi o enxugamento de mais de 1 milhão dos beneficiários, alvos de uma operação pente-fino.

Durante um ano inteiro, o governo federal tergiversou sobre como atender a faixa um do programa Minha Casa Minha Vida. Pensou em voucher, pensou em restringir o benefício, pensou muito. Nada foi posto de pé.

Na balbúrdia do coronavírus, o presidente da Câmara cobra medidas urgentes do governo para preservar a economia e o governo se exime: para Bolsonaro e tecnocratas como o presidente do Banco do Brasil, a solução é soltar as amarras do isolamento, bater de frente contra orientações sanitárias mundiais e cada um que vá cuidar de seu sustento, porque a hora é de trabalhar. Nas curiosas palavras do presidente do Banco do Brasil, o isolamento social não é um tema para ser decidido no âmbito da medicina.

O livre-pensar das autoridades do governo não implanta um isolamento vertical que é desaconselhado por especialistas e que ninguém sabe como poderia funcionar. Serve apenas como areia nos olhos para distrair o público da inação.

O governo Bolsonaro será aquele lembrado por sugerir a privatização da Eletrobras como uma das medidas emergenciais para se combater uma pandemia mundial. Ou pela iniciativa de tentar restringir a Lei de Acesso à Informação. Ou ainda por ser a administração em que o presidente e sua família passam o dia divulgando notícias de procedência duvidosa e batendo boca com adversários políticos. Também pode ser recordado pelo filho deputado que criou uma querela inútil com a China no meio do pânico.

É vasta a sequência de pseudofatos, de crises artificiais, de cavaleiros riscando os cavalos, tinindo as esporas, saindo dos pagos em louca galopada para nada, como dizia o poeta Ascenso Ferreira. Bolsonaro ganha uma aparência de proatividade, quando na realidade é apenas reativo. Traveste-se de vítima do sistema, para justificar a própria inação.

Por último, parte o presidente em entrevista para a Rádio Jovem Pan para a inacreditável tarefa de fritar o seu ministro da Saúde no olho do furacão. Ameaça ordenar a abertura do comércio agora, sendo que o pico da epidemia está sendo projetado para o fim do mês. É de se apostar que o Congresso ou Judiciário irá impedir o tresloucado gesto.

Lições do passado
Observar o passado ajuda a projetar algumas linhas para o futuro. A história da saúde pública no Brasil é uma história de combate a epidemias e pandemias. A cada devastação produzida por um patógeno, houve uma elevação da saúde pública para outro patamar e a subordinação de políticas de Estado a objetivos sanitários.

A trajetória começou com a proclamação da República. Avanços na ciência fizeram com que a medicina se voltasse para a epidemiologia. Não por acaso o serviço sanitário paulista foi criado em 1892, o Instituto Soroterápico de Manguinhos em 1899 e o Instituto Pasteur chegou em 1903.

O cenário estava montado para que o governo implantasse uma política higienista de erradicação de cortiços, aterramento de pântanos, remoções de populações inteiras e vacinação compulsória.
Direitos e garantias individuais que contrariavam a saúde pública não foram levados em conta pelos governos que deram amparo a cientistas como Oswaldo Cruz, Emílio Ribas, Adolfo Lutz, Vital Brasil e Carlos Chagas, que estavam na linha de frente do combate às doenças infecciosas. A revolta da vacina de 1904 é um emblema de uma política de estado que, em nome do interesse da coletividade, se sobrepôs de modo violento à individualidade.

Rompeu-se com a inviolabilidade dos lares e com a garantia do livre arbítrio sobre a própria saúde, em um país em que a emancipação de escravos ainda era uma adolescente de 16 anos. A resistência popular ao higienismo foi combatida com fogo de artilharia de navios de guerra ancorados no Rio.

O saldo imediato, como ficou evidenciado nos anos seguintes, foi a queda drástica nos grandes centros urbanos dos casos de febre amarela, peste bubônica, varíola, malária, cólera e outros flagelos. No caso da varíola, foram 3.566 mortes de cariocas em 1904. Em 1910, apenas uma.

A ação brutal do governo de então, contudo, não debelou a gripe, que continuou matando cerca de 500 pessoas por ano na capital federal, em média. Rodrigues Alves, o presidente higienista da Revolta da Vacina em 1904 terminaria por ser vítima do H1N1, vírus da pandemia de influenza eternizada como gripe espanhola.

A moléstia chegou ao Brasil em 16 de setembro de 1918, a bordo do navio Demerara. Ela se caracterizava por uma evolução lancinante. Entre os primeiros sintomas e o óbito podiam se passar apenas 12 horas. Sem nenhum tratamento conhecido, o isolamento radical era a única maneira de contê-lo e coube a Carlos Chagas comandar o enfrentamento na capital, com carta branca do presidente Venceslau Brás, em fim de mandato. A doença matou 35 mil pessoas no Brasil.

Com 70 anos, Rodrigues Alves seria reconduzido ao poder. Teria sido o segundo presidente mais velho a exercer o cargo, depois de Getúlio e Fernando Henrique. Era conhecido por ser uma pessoa adoentada e não resistiu. Não chegou a tomar posse.

Diferentemente do Brasil da República Velha, o atual é uma democracia. Na evolução desta pandemia, é bastante provável que as autoridades médicas que estão na linha de frente do combate ao vírus ganhem projeção eleitoral relevante no futuro.

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