sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Flávia Oliveira - Antirracismo é atitude

- O Globo

Poucos grupos são mais eficientes em manter privilégios que os homens brancos

Em fins de maio, quando o Brasil voltou os olhos para manifestações nos EUA contra o assassinato de George Floyd, homem negro asfixiado por um policial branco, fazia dez dias que uma operação das polícias Civil e Federal em São Gonçalo (RJ) abreviara a vida de João Pedro Matos Pinto. O estudante de 14 anos estava na casa da família, no Complexo do Salgueiro, e seu corpo ferido foi levado de helicóptero pelos agentes que o fuzilaram, no dia 18 daquele mês. Mas foi a comoção pela vítima americana que respingou no Brasil, não o contrário, embora aqui a letalidade pelo Estado seja mais assombrosa. Em 2019, o Rio de Janeiro contabilizou mais mortes decorrentes de intervenção policial do que os Estados Unidos inteiros.

Por causa de Floyd, porções da sociedade brasileira se deram conta do racismo que, desde sempre, se materializa em homicídios de pessoas negras, escassez de oportunidades de educação e postos de trabalho, más condições de habitação, transporte e acesso à saúde no país. Reivindicações históricas das entidades do movimento negro brasileiro ganharam eco em perfis de A a Z na forma das hashtags #blacklivesmatter, na versão em inglês, ou #vidasnegrasimportam, traduzida. Sob quadrados pretos nas redes sociais multiplicaram-se compromissos com equidade de raça e gênero sob o slogan “Não basta não ser racista, tem de ser antirracista”, retirado da teoria crítica da filósofa americana Angela Davis.

A lufada contra o racismo estrutural, conceito bem demarcado por Silvio Almeida, filósofo, professor de Direito e CEO do Instituto Luiz Gama, atravessou o inverno. Há dúvidas se chega ao fim da primavera. A Coalizão Negra por Direitos, em manifesto pela democracia, denunciou a invisibilidade de mulheres e homens negros nos espaços de poder político Brasil afora e cobrou transformação. Ciente da assimetria na distribuição de verbas entre candidatos brancos e negros, homens e mulheres, o Tribunal Superior Eleitoral determinou a proporcionalidade em 2022. Foi resposta à consulta da deputada Benedita da Silva (PT-RJ), que anunciou a candidatura à prefeitura do Rio e, desde então, não para de sofrer injúrias raciais.

Em ação no Supremo Tribunal Federal, o PSOL solicitou aplicação imediata do modelo equilibrado de repartição. O ministro Ricardo Lewandowski, relator, acolheu o pedido e apontou diretrizes para distribuição dos recursos; o plenário ainda não fechou posição. A revista “Gênero e número” contabilizou aumento tanto no total de candidaturas femininas (+1,3%) quanto de negros (+2%) na corrida municipal 2020, em comparação a 2016. No país inteiro, são 180 mil mulheres e 270 mil pretos e pardos pleiteando cadeiras em câmaras municipais e prefeituras. Pela primeira vez, negros são maioria: 50%, contra 48% dos autodeclarados brancos.

A bem-vinda resposta ao chamado por maior participação no processo político ganha notas de desconfiança, em razão do número de candidatos que alteraram a declaração de cor ou raça à Justiça Eleitoral. Pelo menos 40 mil pessoas, uma em cada quatro registradas quatro anos atrás, mexeram nos registros: 36% passaram de branco para pardo, 30% o contrário. Somente os partidos e os eleitores poderão separar oportunismo de consciência racial. É bom que o façam.

Nas contas da Coalizão Negra, em 2018, homens brancos eram 43% do total de candidatos, mas ficaram com 58% das receitas do fundo eleitoral; mulheres brancas, 18% e 18%. Homens negros, 26% dos candidatos, ficaram com 16% dos recursos, mulheres negras, 13% e 6%, respectivamente. A falta de dinheiro ajuda a explicar por que candidatos negros e negras têm tanta dificuldade para se eleger. No Brasil forjado na escravidão e no patriarcado, poucos grupos são mais eficientes em manter privilégios que os homens brancos.

No Censo 2010 do IBGE, eles representavam 23,7% dos brasileiros, mas ainda hoje são hegemônicos nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, no mundo corporativo, na literatura, nas artes. Mulheres e homens negros, cada qual com 25,4% de participação, e mulheres brancas, 24,7%, seguem invisíveis nos espaços de poder. Mesmo em maioria numérica, são obrigados a lidar com a retórica limitadora de que defendem agendas identitárias, de gênero e raça. A premissa é que só homens cis autodeclarados brancos , os salvadores da pátria, são capazes de pensar, elaborar e implementar um projeto de cidade, estado, país, empresa.

A rede de varejo Magazine Luiza, que tem somente 16% de negros em cargos de lideranças e, num grupo de 250 trainees, contou uma dezena de pretos e pardos, anunciou um recrutamento exclusivos para jovens afro-brasileiros e foi bombardeada nas redes sociais. O Ministério Público do Trabalho recebeu 19 pedidos de investigação por racismo e arquivou todos, porque há vasto entendimento de que não se constrói igualdade sem priorizar grupos excluídos. Candidatos negros na política estão enfrentando asfixia financeira, ataques e boicotes. É hora de os autodeclarados antirracistas agirem. Com discursos, recursos e votos.

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