Poucos
grupos são mais eficientes em manter privilégios que os homens brancos
Em
fins de maio, quando o Brasil voltou os olhos para manifestações nos EUA contra
o assassinato de George Floyd, homem negro asfixiado por um policial branco,
fazia dez dias que uma operação das polícias Civil e Federal em São Gonçalo
(RJ) abreviara a vida de João Pedro Matos Pinto. O estudante de 14 anos estava
na casa da família, no Complexo do Salgueiro, e seu corpo ferido foi levado de
helicóptero pelos agentes que o fuzilaram, no dia 18 daquele mês. Mas foi a
comoção pela vítima americana que respingou no Brasil, não o contrário, embora
aqui a letalidade pelo Estado seja mais assombrosa. Em 2019, o Rio de Janeiro
contabilizou mais mortes decorrentes de intervenção policial do que os Estados
Unidos inteiros.
Por
causa de Floyd, porções da sociedade brasileira se deram conta do racismo que,
desde sempre, se materializa em homicídios de pessoas negras, escassez de
oportunidades de educação e postos de trabalho, más condições de habitação,
transporte e acesso à saúde no país. Reivindicações históricas das entidades do
movimento negro brasileiro ganharam eco em perfis de A a Z na forma das
hashtags #blacklivesmatter, na versão em inglês, ou #vidasnegrasimportam,
traduzida. Sob quadrados pretos nas redes sociais multiplicaram-se compromissos
com equidade de raça e gênero sob o slogan “Não basta não ser racista, tem de
ser antirracista”, retirado da teoria crítica da filósofa americana Angela
Davis.
A
lufada contra o racismo estrutural, conceito bem demarcado por Silvio Almeida,
filósofo, professor de Direito e CEO do Instituto Luiz Gama, atravessou o
inverno. Há dúvidas se chega ao fim da primavera. A Coalizão Negra por
Direitos, em manifesto pela democracia, denunciou a invisibilidade de mulheres
e homens negros nos espaços de poder político Brasil afora e cobrou
transformação. Ciente da assimetria na distribuição de verbas entre candidatos
brancos e negros, homens e mulheres, o Tribunal Superior Eleitoral determinou a
proporcionalidade em 2022. Foi resposta à consulta da deputada Benedita da
Silva (PT-RJ), que anunciou a candidatura à prefeitura do Rio e, desde então,
não para de sofrer injúrias raciais.
Em
ação no Supremo Tribunal Federal, o PSOL solicitou aplicação imediata do modelo
equilibrado de repartição. O ministro Ricardo Lewandowski, relator, acolheu o
pedido e apontou diretrizes para distribuição dos recursos; o plenário ainda
não fechou posição. A revista “Gênero e número” contabilizou aumento tanto no
total de candidaturas femininas (+1,3%) quanto de negros (+2%) na corrida
municipal 2020, em comparação a 2016. No país inteiro, são 180 mil mulheres e
270 mil pretos e pardos pleiteando cadeiras em câmaras municipais e
prefeituras. Pela primeira vez, negros são maioria: 50%, contra 48% dos
autodeclarados brancos.
A
bem-vinda resposta ao chamado por maior participação no processo político ganha
notas de desconfiança, em razão do número de candidatos que alteraram a
declaração de cor ou raça à Justiça Eleitoral. Pelo menos 40 mil pessoas, uma
em cada quatro registradas quatro anos atrás, mexeram nos registros: 36%
passaram de branco para pardo, 30% o contrário. Somente os partidos e os
eleitores poderão separar oportunismo de consciência racial. É bom que o façam.
Nas
contas da Coalizão Negra, em 2018, homens brancos eram 43% do total de
candidatos, mas ficaram com 58% das receitas do fundo eleitoral; mulheres
brancas, 18% e 18%. Homens negros, 26% dos candidatos, ficaram com 16% dos
recursos, mulheres negras, 13% e 6%, respectivamente. A falta de dinheiro ajuda
a explicar por que candidatos negros e negras têm tanta dificuldade para se
eleger. No Brasil forjado na escravidão e no patriarcado, poucos grupos são
mais eficientes em manter privilégios que os homens brancos.
No
Censo 2010 do IBGE, eles representavam 23,7% dos brasileiros, mas ainda hoje
são hegemônicos nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, no mundo
corporativo, na literatura, nas artes. Mulheres e homens negros, cada qual com
25,4% de participação, e mulheres brancas, 24,7%, seguem invisíveis nos espaços
de poder. Mesmo em maioria numérica, são obrigados a lidar com a retórica
limitadora de que defendem agendas identitárias, de gênero e raça. A premissa é
que só homens cis autodeclarados brancos , os salvadores da pátria, são capazes
de pensar, elaborar e implementar um projeto de cidade, estado, país, empresa.
A rede de varejo Magazine Luiza, que tem somente 16% de negros em cargos de lideranças e, num grupo de 250 trainees, contou uma dezena de pretos e pardos, anunciou um recrutamento exclusivos para jovens afro-brasileiros e foi bombardeada nas redes sociais. O Ministério Público do Trabalho recebeu 19 pedidos de investigação por racismo e arquivou todos, porque há vasto entendimento de que não se constrói igualdade sem priorizar grupos excluídos. Candidatos negros na política estão enfrentando asfixia financeira, ataques e boicotes. É hora de os autodeclarados antirracistas agirem. Com discursos, recursos e votos.
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