O que quer o presidente é que lhe apresentem uma fórmula mágica imune a prejuízos eleitorais
Seguia o Bolsa Família sua vidinha de filho mais ou menos enjeitado até que veio a pandemia e revelou-se a prodigalidade do rebento: forte produtor de votos, ao qual Jair Bolsonaro se dispôs de imediato a oferecer paternidade. A conta do custo-benefício a princípio pareceu simples, baseada na proverbial lógica de que é dando (aos pobres) que se recebe (também dos paupérrimos).
No
entanto, a realidade, esta madrasta, revelou que as coisas são bem mais
complicadas. Lá se vão mais de quarenta dias desde que o presidente manifestou
intenção de imprimir sua marca em programa de transferência de renda
robustecido e ampliado, e até agora não conseguiu achar uma solução. Pegou
vários atalhos, trilhou diversos caminhos e hoje se vê perdido no labirinto por
onde enveredou por vontade própria, no afã de construir uma porta de entrada na
luta pela reeleição em condições ultravantajosas.
Sua
equipe econômica faz esforços inúteis para agradar ao chefe, cuja noção de
aritmética não leva em conta as relações de perdas e ganhos contidas nas
operações de soma, subtração, multiplicação e divisão. Isso não apenas no
tocante a números, mas também a implicações legais e políticas.
O
presidente da República quer dispor de mais recursos sem cortar despesas, dar
mais a quem precisa sem desagradar a quem de tantos benefícios não necessita.
Não pretende enfrentar estruturas arraigadas com reformas profundas nem encarar
questões espinhosas como extinção de auxílios ineficientes ou revisão do teto
de gastos. Portanto, o que quer o presidente é que lhe apresentem uma fórmula
mágica imune a prejuízos eleitorais. Em resumo, almeja o impossível, e aí Bolsonaro
tromba com a política, a arte do possível.
“O
governo pega atalhos e não chega a lugar algum na assistência aos cobiçados
pobres”
Talvez
ele esteja confiando que no final o Congresso opte por fazer a escolha
possível: aumento de imposto. É a única explicação plausível para o presidente
ter apresentado uma proposta tão inaceitável como essa de financiar o programa
assistencial dando calote nos precatórios e retirando recursos do fundo de
financiamento da educação básica.
Jair
Bolsonaro pode muito bem estar pensando em forçar os congressistas a concluir
que a única saída para a necessidade de atender os mais pobres seria a chamada
nova CPMF, defendida por Paulo Guedes. Ministro que já havia alertado sobre o
risco de abrir “caminho para o impeachment” com excessos criativos no campo
contábil e naturalmente reconhece o caráter de pedalada nos truques agora
sugeridos com os precatórios e o Fundeb.
Como
vimos na promessa de não tentar se reeleger, de não entrar na eleição municipal
e na ordem de suspender o debate sobre o Renda Brasil (“até 2022”) uma semana
depois propor o Renda Cidadã, o que o presidente diz não se escreve. Daí, a
altíssima probabilidade de o desenho do Renda Cidadã não sobreviver aos efeitos
do bom senso geral.
Mas
Jair Bolsonaro não desistirá. Já começa a transferir responsabilidade quando
cobra dos críticos uma solução e, não demora, acusará os congressistas de
insensibilidade social e culpará as eleições pela resistência deles à
socialização do prejuízo mediante o aumento de impostos. Isso porque está na
gana pela reeleição a origem do problema que ele mesmo criou.
– Velhos
de guerra.
Não é coincidência, mas um elogio às vozes da experiência o fato de
governadores e deputados eleitos sob a égide da “nova política” estarem sendo
empurrados para fora do jogo. No Poder Executivo, Wilson Witzel (RJ) e Carlos
Moisés (SC) sob o risco concreto de ser impedidos de completar os mandatos. No
Legislativo, a troca de toda a turma de líderes e vice-líderes governistas
novatos por gente velhíssima (para o bem e para o mal) na guerra da política.
Os
governadores caíram na armadilha do voluntarismo, da imprudência e da ideia de
que o poder em si pode tudo. Os deputados atropelaram-se ao privilegiar a
fidelidade ao Planalto em detrimento das peculiaridades do Congresso. Ambos os
casos servem de exemplo tanto ao eleitor quanto ao presidente de que o “novo”
não é necessariamente sinônimo de “bom”.
– Livre
pensar.
Não há no Supremo Tribunal Federal preocupação com o viés ideológico do
substituto de Celso de Mello, seja ele o desembargador Kassio Nunes ou outro se
Bolsonaro mudar de ideia. A identificação, no entendimento em vigor na Corte, é
muito menos importante que a atuação autônoma na guarda da Constituição.
Publicado em VEJA de 7 de outubro de 2020, edição nº 2707
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