Para autor de livro recém-lançado, presidente mantém vivo discurso da linha dura e de grupos de extermínio
[RESUMO] Ligação de
militares da linha
dura da ditadura com membros de esquadrões
da morte forjou uma ideologia conspiratória, antidemocrática e de
exaltação da força policial, não raro associada a práticas criminosas, que
chegou ao centro do poder com a eleição de Bolsonaro, ameaçando as conquistas
de três décadas de redemocratização.
Duas
das principais referências morais e profissionais na formação do presidente
Jair Bolsonaro foram o general do Exército Newton
Cruz e o coronel Carlos
Brilhante Ustra. Em comum, ambos eram contrários ao processo de abertura
que levaria à Nova República e assumiam a necessidade de sujar as mãos na
disputa política que viam como uma guerra.
Chefe
da agência central do SNI
(Serviço Nacional de Informações), cargo que exerceu até 1983, quando foi
para Brasília assumir o Comando Militar do Planalto, Cruz foi um dos
representantes da linha dura na Presidência de João
Baptista Figueiredo, organizando a resistência contra a redemocratização em
um período em que pelo menos 40 bombas explodiram no Brasil.
A
série de atentados, cujo objetivo era provocar medo para justificar novas
medidas de endurecimento, culminou com a bomba no
Riocentro, em 1981, que devia explodir durante um show de MPB com cerca de
20 mil pessoas. O artefato, contudo, estourou antes, dentro de um carro com
dois militares. Cruz assumiu, anos depois, que havia sido informado dos planos
e nada fez por falta de tempo.
Ustra,
por sua vez, foi chefe
do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações) do 2º Exército
em São Paulo entre 1970 e 1974. O então major era valorizado pelos militares da
linha dura como o símbolo dos oficiais que sujaram a mão na guerra, em
contraponto aos burocratas fardados que se articulavam na transição para
entregar o poder aos inimigos civis.
Nos
porões paulistas, liderados por Ustra, a tortura era prática comum. Dos 876
casos catalogados no livro “Brasil: Nunca Mais”, cerca de 400 ocorreriam no
centro comandado por ele.
Ustra
escreveria sua visão da história no livro “A
Verdade Sufocada”, uma das bíblias bolsonaristas, no qual se queixou de que
o Brasil sofria na democracia derrotas comprometedoras na batalha ideológica,
que deveria ser vencida a qualquer custo.
As
esquerdas, dizia ele, estavam na dianteira, ganhando a mente das massas,
dominando postos estratégicos nas universidades, escolas, Redações dos jornais
e no mundo das artes. A vitória cultural da esquerda também atrapalhava as
polícias militares, cujo trabalho no combate ao crime sofria sabotagem dos
defensores de direitos humanos.
O
discurso antidemocrático e conspiratório, contra a Constituição de 1988 e o
novo regime que surgia, marcaria a carreira de uma legião de militares, como
Bolsonaro.
Em
março de 1985, quando José Sarney assumiu a Presidência, o nome de Newton Cruz
foi retirado da lista de promoção ao topo da carreira. O general foi para a
reserva, contribuindo para alimentar a mágoa de Bolsonaro, como conta Flávio,
seu filho, na biografia que escreveu sobre o pai, “Mito ou Verdade: Jair
Messias Bolsonaro”.
O
coronel Freddie
Perdigão, acusado de planejar o atentado no Riocentro e integrante da Casa
da Morte (centro clandestino de tortura e assassinato), em Petrópolis, deixaria
o Exército e se envolveria na segurança de bicheiros na Baixada Fluminense,
associado a grupos de extermínio.
A
ponte dos egressos da linha dura para a cena criminal e de extermínio do Rio seria
feita com a ajuda de membros dos esquadrões da morte cariocas, como os
policiais civis Mariel Mariscot e Euclides Nascimento —este último presidia a
Scuderie Le Cocq, organização que levou as práticas de execução a outros
estados, em especial o Espírito Santo.
Bolsonaro,
inconformado com os ventos democráticos, passou
a agitar contra os comandos da Nova República a partir de 1986. Primeiro,
escrevendo um artigo, publicado na revista Veja, em que se queixava dos
salários nas Forças Armadas.
No
ano seguinte, ele daria um passo além e contaria em off a uma repórter da mesma
revista os planos para explodir algumas bombas, tumultuar o ambiente político e
demonstrar a fragilidade do então ministro do Exército, Leônidas Pires
Gonçalves, e do presidente José Sarney.
Diante
do risco real a terceiros, a revista revelou os planos de Bolsonaro, que passou
por um processo militar, mas foi absolvido. A versão da revista, no
entanto, era consistente e não havia como o capitão seguir carreira no Exército
da democracia.
Com
a fama adquirida após o episódio, o reformado Bolsonaro daria início a sua
carreira política, atuando como sindicalista de luxo para aumentar salários e
aposentadorias de policiais e militares. As mágoas em relação ao establishment
político estavam mais vivas do que nunca e definiram sua trajetória. Em quase
três décadas de carreira parlamentar, ele seria a antítese da política, o
deputado em defesa da guerra contra o crime e a subversão esquerdista.
Em
sua retórica explosiva, ultrapassava os limites da decência e do decoro,
fortalecendo o sobrenome da família com infâmias que nem mesmo os linhas-duras
tiveram coragem de falar em público durante a repressão. Mantinha vivo na
democracia o discurso dos policiais exterminadores.
Bolsonaro
era capaz de apoiar o uso do pau de arara contra suspeitos, celebrar grupos de
extermínio e milícias e pregar o assassinato criminoso de “bandidos” por forças
paramilitares, chegando ao ponto de dizer em um programa de TV que a
solução para o Brasil era uma guerra civil, que levasse à morte pelo menos 30
mil pessoas.
Para
ele, a Constituição de 1988 e as políticas de direitos humanos que tentavam
controlar a violência policial eram amarras que impediam uma guerra necessária
no país. Dessa forma, o parlamentar e seus filhos se tornaram porta-vozes
ideológicos dos policiais que sujaram as mãos na batalha contra o crime.
Havia
uma forte afinidade de valores entre eles: a violência redentora e fardada,
mesmo quando agisse contra a lei, poderia salvar o Brasil, algo que o deputado
e seu clã sempre alardearam abertamente em discursos e projetos parlamentares.
Pintados
como heróis, esses policiais matadores, mais cedo ou mais tarde, usavam seu
poder para enriquecer com diversos negócios criminosos. Foi assim que Bolsonaro
e seus filhos se aproximaram de alguns dos milicianos mais perigosos do Rio.
Isso
ocorreu por intermédio do policial militar Fabrício
Queiroz, que tinha papel de destaque nos mandatos parlamentares do clã.
Queiroz trabalhou a maior parte da carreira como policial do 18º batalhão, em
Jacarepaguá, unidade cuja omissão seria fundamental para o processo de espraiamento
das milícias a partir de 2000 no Rio.
Nesse
período, Queiroz se envolveu em ações suspeitas, como um homicídio em 2003 praticado
com um policial egresso do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais),
que na década seguinte se tornaria um dos bandidos mais perigosos da nova cena
criminal do Rio: o ex-capitão Adriano
Magalhães da Nóbrega.
O
laço de sangue e lealdade levou Queiroz a aproximar Adriano dos Bolsonaros, que
passariam a defendê-lo e ajudá-lo por mais de uma década.
Nesses
anos, Adriano organizou ações de matadores e ganhou dinheiro com
empreendimentos ligados ao jogo de azar e com a venda de imóveis irregulares em
áreas protegidas ambientalmente na região de Rio das Pedras, bairro com forte
presença de milícias. Morreu
em uma ação policial na Bahia em fevereiro deste ano, após quase um
ano foragido.
Durante
esse processo de embarque de Adriano no mundo do crime, os Bolsonaros prestaram
diversas homenagens a ele. Flávio contratou como assessoras de seu gabinete na
Assembleia Legislativa do Rio a mãe e a mulher do ex-capitão da PM.
Esses
e outros vínculos com criminosos e seu histórico compromisso com a defesa da
violência e da ideologia paramilitar não impediram a vitória de Bolsonaro na
eleição de 2018. Talvez tenham até ajudado.
A
última disputa presidencial marcou
também o ocaso da Nova República, 33 anos depois de seu nascimento. Desde
pelo menos junho de 2013, com as manifestações de rua, o clima político parecia
fora do eixo.
A
situação se agravou depois de 2014, quando denúncias sobre corrupção e caixa
dois envolvendo políticos, reveladas pela Lava Jato, passaram a dominar quase
diariamente o noticiário.
Pouco
depois, houve o impeachment de Dilma Rousseff (PT). Seu sucessor, Michel Temer
(MDB), também foi alvo de denúncias de corrupção. Somado a tudo isso, o país
enfrentou uma crise econômica e fiscal de proporções dramáticas, criando uma
imensa sensação de impotência e de depressão coletiva, período marcado pela
descrença na política e nos políticos da Nova República.
Quando
se esvai a fé na política como forma de mediação dos conflitos, resta a polícia
—uma autoridade capaz de estabelecer a ordem e garantir a obediência pelo uso
da força. O discurso
da violência redentora pregado por Bolsonaro ganhou receptividade
ampla e nacional.
Os
brasileiros escolheram como líder um apologista dos justiceiros, como se
decidissem abandonar suas crenças nas instituições democráticas para
transformar o país em um imenso Rio
das Pedras.
Bolsonaro
ainda recebeu em peso o apoio dos militares, que jogaram por terra três décadas
de consolidação das Forças Armadas como instituição do Estado ao assumir um
lado e participar da política. O vice-presidente, Hamilton
Mourão, outro fã declarado de Ustra, puxou o bonde e atraiu membros da
tropa militar para o governo.
A eleição de Bolsonaro marcou o fim da Nova República para inaugurar a imprevisível república das milícias.
*Bruno Paes Manso, Jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, é autor de "A República das Milícias - dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro" (ed. Todavia)
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