Sob
Aras, procuradoria se omite da função de fiscalizar e cobrar o governo
As
ameaças de Jair
Bolsonaro de dificultar a aprovação de vacinas
contra o novo coronavírus pela Anvisa e
sua afirmação reiterada de que o governo federal não vai comprar para fornecer
a Estados e municípios e ao SUS a Coronavac, caso ela venha a ser a primeira a
concluir as fases de teste de segurança e eficácia, explicitaram a completa
omissão do Ministério
Público Federal, sob Augusto Aras, em sua
função precípua de fiscalizar e cobrar o poder público e representar a
sociedade.
Essa
omissão começou graças ao processo de escolha do procurador-geral da República:
à revelia da própria instituição, apontado por Jair Bolsonaro justamente pelo
fato de não ter se submetido à lista tríplice dos pares e depois de sucessivos
encontros em palácios em que, depois, o presidente fazia questão de colocá-lo
debaixo da asa e deixar claras as afinidades em defesa da “Pátria”, da
“família” e sabe-se mais o quê.
De propósito, Bolsonaro tratou de manter Aras na lista dos “supremáveis”, aqueles que poderia indicar à cadeira de Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal. Isso explica por que, por exemplo, ao pedir uma investigação a respeito das denúncias de Sérgio Moro contra o presidente, Aras tenha feito questão de incluir o ex-ministro como investigado por suposta denunciação caluniosa. Não vai dar em nada para nenhum dos dois, se depender dele, e a intenção sempre foi essa.
Mas
não é só. A maneira como Aras montou a estrutura interna do MPF, centralizando
nas estruturas próximas de si qualquer iniciativa de fiscalização do governo,
amarrou os procuradores. Isso, conjugado com o aumento das ameaças de sanções
disciplinares por órgãos, como o Conselho do MPF, funcionaram como mordaças não
só para os atuantes em forças-tarefas, como a da Lava Jato,
mas também em grupos antes muito ativos, como os de defesa dos direitos humanos
e do meio ambiente, não por acaso áreas críticas para o governo
Bolsonaro.
Procuradores
que adotaram medidas contra o ministro Ricardo Salles foram
questionados no Conselho por passarem por cima das instâncias encarregadas de
fazer isso. Tentativa de censura explícita.
Agora,
Aras determinou que as iniciativas quanto ao acompanhamento das ações
governamentais no enfrentamento da pandemia de covid-19 fiquem a cargo de um “gabinete
integrado de acompanhamento da covid-19”, ligado diretamente ao gabinete da
PGR.
Bolsonaro
cometeu todos os abusos que cometeu nesta semana, ameaçando boicotar a vacina,
promovendo mais um remédio sem eficácia comprovada em solenidade oficial, dizendo
que tentará influenciar uma decisão da Anvisa, agência que precisa ser
independente, e o que fez o tal gabinete da covid do MPF?
No
dia 21, o tal gabinete encaminhou a todos os procuradores, pela rede interna de
e-mail, uma mensagem contendo o “resumo da coletiva de imprensa do Ministério
da Saúde” e um “comunicado interministerial” do Ministério das Comunicações
listando todas as iniciativas do governo no enfrentamento da pandemia. Apenas
isso.
A
atuação do grupo como mero porta-voz do Planalto revoltou os procuradores, que
responderam à mensagem dizendo que esperavam que, na rede da instituição, se
informasse o que o MPF pretende fazer para cumprir seu papel constitucional de
representar os interesses da sociedade brasileira, nessa questão das vacinas,
que vai caminhando para se transformar num grave impasse entre entes
federativos.
A capitulação de um órgão que a Constituição fez questão de deixar desvinculado dos três Poderes justamente para assegurar sua independência é um sinal eloquente da redução do espaço democrático. Ela se dá muito concretamente em diferentes frentes. Quando a reação vier, e se vier, poderá ser tarde demais.
* Editora do BR político e apresentadora do programa Roda Viva, da TV Cultura
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