Um
ambiente plural e diversificado é o único antídoto contra aspirantes a ditador
No
momento em que somos tentados a fazer o balanço de perdas e danos, lamentando,
depois de 30 e poucos anos, as ilusões precocemente perdidas, convém lembrar os
bons pressupostos e o início auspicioso deste período mais recente da nossa
História política. A impressão generalizada em seguida ao regime militar era de
que o País estava finalmente pronto para integrar, de corpo e alma, o grupo de
nações que conseguem conjugar, com um grau mínimo de coerência, capitalismo e
democracia, economia de mercado e integração social. Um grupo relativamente
reduzido, é certo, mas habituado a sinalizar rumos e a atrair a esperança de
quem vive sob regimes fechados mundo afora.
Na verdade, essa não era uma ideia surgida aleatoriamente na acidentada trajetória de modernização por que passamos. Na saída de uma dessas ditaduras que conformaram duradouramente as relações entre Estado e sociedade, a ditadura do Estado Novo, um grande conservador como Gilberto Freyre chamava a atenção para a plasticidade da formação social brasileira. Segundo ele, tal plasticidade, própria de um exuberante povo em formação, seria até capaz de irradiar para outras latitudes o amor à diferença, o propósito de conciliar elementos heterogêneos, étnicos ou culturais que fossem.
Freyre,
no texto a que aludimos (A Nação e o Exército, de 1948), fechava os olhos para
os aspectos novamente repressivos do governo da época, imerso na guerra fria e
mecanicamente alinhado a um dos seus polos. Nada desprezível o impacto que
teriam em futuros eventos a ilegalização do Partido Comunista e as intervenções
arbitrárias no movimento sindical. Não era esse o caminho do Ocidente político
que aspirávamos a ser, como o demonstravam, na mesma altura, os casos
exemplares de França e Itália. Mesmo assim, o sociólogo nos descrevia como um
país cujo destino tinha raízes na capacidade de manter o equilíbrio de
antagonismos ou, o que assegurava ser a mesma coisa, a tolerância entre contrários.
Ocidente
político não é nenhuma expressão cifrada, ainda que exija rigor conceitual e
adesão consciente. Trata-se de uma situação, descrita classicamente por
Gramsci, em que entre sociedade política e sociedade civil há um saudável
equilíbrio. A primeira não esmaga a segunda nem tolhe arbitrariamente seus
movimentos. Partidos, ONGs, imprensa, vida sindical, associativismo popular,
tudo isso compõe um ambiente plural e diversificado, que, na verdade, é o único
antídoto contra a permanente insídia dos autoritários e aspirantes a ditador.
Para falar a verdade, é o anticorpo infalível contra a repetição das
experiências totalitárias do século 20, entre as quais, ao lado dos fascismos,
cabem muito bem o comunismo stalinista e suas derivações.
Freyre,
apesar do tempo transcorrido entre o seu e o nosso tempo, estava bem consciente
desse requisito “ocidental”. Um Estado “organizado” – particularmente o
Exército, a instituição da força por excelência – e uma sociedade
“desorganizada” caracterizam estruturas politicamente subdesenvolvidas, fadadas
a sofrer periódicas recaídas autoritárias e recorrentes candidatos a Bonaparte.
E foi essa lição decisiva que liberais, progressistas e até ampla parte da
esquerda incorporaram como patrimônio na saída da segunda experiência de
governo “forte” da modernização, entre 1964 e 1985. Um patrimônio que, como é
de conhecimento público, tomou corpo na Carta de 1988, que passou a ser desde
então a linha discriminatória entre democratas e não democratas.
Nem
sempre os governos de esquerda estiveram à altura da ideia democrática
rigorosamente concebida. Não me refiro só ao desvirtuamento do Parlamento ou a
práticas de loteamento de estatais poderosas, mas também, e talvez
principalmente, a orientações anacrônicas de valor, como concessões ao
horizonte da “revolução” que se tentava reatualizar em outros contextos. Mas é
forçoso admitir que hoje as democracias de tipo ocidental, entre as quais
obstinadamente nos queremos incluir, estão sob evidente ameaça da extrema
direita arregimentada sob a bandeira do nacional-populismo. Como em tempos
sombrios do século passado, essa direita não democrática mimetiza o gesto
revolucionário, produzindo paródias grotescas de assalto aos palácios de poder,
como a vista no 6 de janeiro norte-americano. Efeito paródico que também se
sente quando, por aqui, setores desgarrados do establishment desenham
planos e balbuciam palavras de ordem antiestablishment, como se jacobinos
fossem.
A
democracia de 1946 durou menos de duas décadas e, no fim, não teve quem a
defendesse, dada a variedade de atores que apostavam no confronto. Nada
consolador o fato de que o regime nascido desse confronto viria a ser
desenvolvimentista, remodelando a sociedade no sentido de “mais capitalismo”. A
conta apareceu na forma de incultura cívica, menoridade intelectual e atraso
político, que agora voltam a se manifestar como negação da tolerância e do
equilíbrio de antagonismos. Um preço alto demais que, estejamos à direita ou à
esquerda, devemos rejeitar com convicção.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
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