É dever da política providenciar o oxigênio. Inexiste explicação, argumento ou causa nobre que justifique deslocar a plano sequer concorrente qualquer outra prioridade do país. Suspender juízos doutrinários, moderar impulsos inovadores, adiar definições partidárias, repensar alianças políticas são procedimentos cabíveis para combater, da melhor forma possível, os danos sociais da pandemia. Esse o sentido mais objetivo e atual que podem assumir a política econômica, as políticas de auxílio a vulneráveis e as chamadas reformas, por mais que todas essas políticas remetam, também, a horizontes transcendentes ao contexto da pandemia. Prospecções e metas, sejam quais forem seus intervalos temporais, tendem ao fracasso se não dialogarem com esse contexto que as pauta. Pode-se dizer que entregar esse oxigênio é a prova de legitimidade a que se submete, hoje, nossa democracia.
A
representação política é a forma institucional que permite conseguir o oxigênio
para a sociedade não parar de respirar. Fora dela o sucesso é improvável.
Contra ela, inviável. A ciência normativa da política ensina que, num país onde
presidencialismo é tradição arraigada e instituição vigente, a representação
política nacional realiza-se, de fato, por duas vias concorrentes, o Congresso
e a Presidência da República, que repartem o governo. E sendo o Estado,
ademais, federativo, essa bifurcação da representação desdobra-se em
governadores e prefeitos, deputados e vereadores.
No
mesmo sentido há uma lição da política prática que a pandemia reitera de modo
cabal. Passaram pelo crivo da representação política – sob guarda e vigilância
do Judiciário - todos os instrumentos de que, bem ou mal, dispomos hoje para
reduzir danos. E todos os fracassos que agravaram danos estiveram ligados à
pretensão presidencial de desvirtuar a representação política, seja para tornar
despótica a que ele exerce, seja para atacar as demais instâncias
representativas e seus respectivos titulares, em quem vê inimigos.
É
fato, porém, que, mesmo subvertendo instituições e os padrões de interação
política próprios da democracia, o presidente exerce um mandato representativo.
E para que não se incorra em autoengano, é bom entender que seu mandato foi conquistado
em arena eleitoral diversa daquela que cria a representação legislativa, sendo
exercido, portanto, conforme lógica personificada, oposta à que preside a
dinâmica partidária do Legislativo. Portanto,
não será propriamente uma aberração Bolsonaro enfrentar com sucesso uma nova
eleição presidencial mesmo se estiver novamente, como já esteve, isolado, no
Congresso. Do mesmo modo poderá se dar mal na reeleição, mesmo com todo o
centrão em seus braços. Retomo um ponto que mencionei em artigo recente (“Crônica
de um revés parcial: duas arenas e a política de resistência democrática” – Revista eletrônica Política Democrática / fevereiro 2021)
para frisar que a dinâmica eleitoral e parlamentar do Congresso é uma, a da
disputa e exercício da Presidência, outra. O fato de Bolsonaro ser um protofascista não
deve cegar para o fato de que não apenas ele é um líder plebiscitário, mas
também é plebiscitária a lógica da instituição que ele preside, embora o faça de
modo exacerbado, capaz de levar a lógica à sua nêmesis. Competir implica
atentar a esse aspecto.
Conclamações,
no interior da sociedade política, a um esforço comum dos Poderes da República,
acima dos partidos e grupos, para haver vacina e vacinação refletem crescente
consenso a partir de uma gradativa noção da gravidade do problema e do perigo
intrínseco que ele traz de esgarçar o tecido social e assim trincar a
legitimidade do sistema político. Porém, é da própria natureza da política
democrática, que a coordenação de ações cooperativas ocorra tendo como premissa
a competição política. Nada mais inócuo do que o apelo - ingênuo ou demagógico
- para que se sacrifique crenças e interesses parciais para abraçar crenças e
interesses comuns. O repertório de crenças é sempre plural e o interesse comum são
pontos. Portanto, fala-se aqui não de sacrifício, mas de boa compreensão. Os
termos da competição mudam em presença da pandemia, reforçando o hábito de
alianças e a construção de consensos.
Mas não se cogita suspender a competição. Precisamente nisso consiste uma
diferença crucial entre saídas democráticas e autoritárias da crise.
Resulta,
daí, que é possível pensar numa ampla frente por vacinação no Congresso, que vá
do centrão à esquerda, quase uma unanimidade e ser necessário fazer, na outra
arena, oposição frontal à política (ou antipolítica) de Bolsonaro na Saúde. O
mesmo vale para o auxílio emergencial e todos os demais pontos da agenda
política. Consensos legislativos constroem-se pela média das posições. Eles não
excluem que o que ficou à margem do consenso seja objeto de renhida disputa na
arena presidencial.
Considerar
assim a competição implica em saber que o governo federal, em que pese ter
posto em prática, durantes vários meses, uma ação negacionista aniquiladora dos
meios institucionais de combate à pandemia, acena agora a uma reversão de
turbina no objetivo, sem, no entanto, desistir do método de desconstruir
instituições. Declara agora querer apressar a vacina e sob esse pretexto
procura desqualificar tecnicamente a Anvisa, por uma manobra legislativa que a
submeteria a comandos políticos. Sob o mesmo pretexto, o ministro Pazuello
altera o critério da vacinação e desorienta prefeitos a não mais guardarem
segundas doses, ainda que ao risco de criar um contingente de sub
vacinados. Seriam folclóricos, se não
fossem delituosos, os arroubos ilusionistas do ministro, fazendo projeções
fictícias com vistas a acalmar os sobressaltos, adiando-os até que se tornem
novos e trágicos fatos consumados. Para não falar na manutenção, em meio à
guinada retórica, da mesma omissão do MS nas tarefas de coordenação do SUS, do
que resulta uma ausência de padrão nacional no modus operandi da
vacinação e a insensata definição de 80 milhões de pessoas como prioritárias. A
demagogia é filha primogênita do negacionismo. Quais serão os frutos podres
seguintes?
Há,
portanto, novidades nos movimentos atuais do Bolsuello na Saúde e quem quiser
se opor a eles de modo consequente precisa entender o mal desde a gênese. É
errado narrar o processo como desastre iniciado só quando o Eichmann da
logística sentou-se na cadeira de ministro. Assim como erra quem supõe que o
mal é banal como ele e se irá com ele caso as instituições o expilam, como
devem fazer. A operação militar cujas
consequências mais drásticas talvez o país ainda não tenha sofrido não
pretendeu, a princípio, implantar coisa alguma, só intentou destruir um arranjo
institucional de política pública com alta capacidade de agregação política,
que dava a esse arranjo também um potencial eleitoral. A imprensa brasileira e
os meios políticos enxergaram bem que Bolsonaro, ao retirar Luiz Mandetta do
ministério da Saúde, no auge da pandemia, queria afastar um potencial
adversário nas urnas. Mas não estavam igualmente atentos – ou se estavam
subestimaram – ao fato de que o script era, mais que afastar Mandetta,
destruir o arranjo que ele armou.
A
memória dessa pandemia precisa corrigir um equívoco: ela não se divide em antes
e depois de Pazuello e sim entre um durante e um depois de Mandetta. É
inaceitável colocar como análogas a sua experiência no MS e a de Nelson Teich. Mas
é o sistematicamente dito, desde aquela época. E, no entanto, cá estamos, um
ano depois, falando de Mandetta. Por que, se nenhum partido o adotou? Atribuo o
fato à consistência do legado de uma gestão.
Uma
oposição realista que se deseje digna do substantivo e do adjetivo não fará movimentos
em círculo para reinventar a roda. Se
quiser um roteiro para uma condução alternativa à irresponsabilidade do MS, irá
encontrá-lo naquela curta experiência. A propósito, permitam-me fazer nova autorreferência,
agora ao artigo “Desconstrução de memória da gestão Mandetta é
ameaça ao SUS” (Revista Política Democrática / maio 2020). Relembro
aqui partes dele, indicando que Pazuello ainda não era ministro e já não se sabia aonde fora parar a
ênfase engajada no isolamento como conduta prudente e solidária; a conexão
estreita com o mundo da ciência e a área técnica da saúde pública; a articulação
federativa que gerava sintonia fina entre o MS e os governadores; a articulação
com o Congresso, para opinar sobre o conteúdo das medidas a serem votadas.
Pazuello ainda era o segundo do MS e já se notava a lassidão federal face à
velocidade da crise sanitária e era notória a indiferença do ministro sucessor à
dimensão política da crise. Já ali a intervenção começara, através da
secretaria executiva do ministério, desconectada da área de saúde e assumida
por um militar interventor que já rondava a cadeira do ministro. E já ali se interrompia o fluxo de informação
segura, realista, transparente e diária com a qual o MS vinha a público,
substituída por informação rarefeita e filtrada na forma de monólogos.
Infelizmente não se deu
a esse imediato contraste a atenção devida. O fato do novo ministro ser um
médico permitiu uma benevolência que gerou um lapso curto, mas fatal. Os meios
de comunicação e as forças políticas do País não esboçaram, diante do gesto
absurdo do presidente contra um gestor comprometido com uma política pública
geradora de moderação e de grande empatia social, uma reação sequer aproximada
à que se deu quando, logo depois, o ministro Sergio Moro saiu do governo
atirando. Bem pesadas as coisas, merece reflexão crítica a prioridade dada,
como fato digno de reação política e civil, à indicação do superintendente da
PF do Rio de Janeiro, objeto de intervenção judicial, enquanto a demissão do
ministro da Saúde sequer suscitara declarações de intenção de embargo. Contudo,
o contraste foi instantaneamente gritante entre a sensação de segurança
relativa de antes, em meio ao temor e a impressão, já então presente, de que o
governo desligara os motores do MS para descer na banguela a ladeira da
pandemia.
Hoje
já está em curso mais do que uma ação destrutiva. Apesar dos danos que ela
causou e causa, o governo pretende ser beneficiário de ações da coalizão pró
vacina que se articula no Congresso Nacional. Entendendo o paralelismo das
arenas, é papel da oposição reforçar a coalizão sem permitir essa fraude. A
marcação cerrada sobre o MS, com ou sem Pazuello, não poderá descansar. Precisa
envolver a sociedade civil e ter clareza sobre o que propor.
Os
pontos que alinhavei sugerem que cabe ao ex-ministro da Saúde papel de
coliderança no grande esforço nacional para enfrentar a crise sanitária sem
ceder ao caráter antissocial da política do governo e ao mesmo tempo sem
dispensá-lo das pressões possíveis para que cumpra o seu papel. Sua imagem
pública lhe permite agir ao modo usual da sociedade civil .
Ele
também é um quadro da sociedade política que se conectou com o andar de baixo do
eleitorado sem a mediação de uma prévia identidade
partidária. É um perfil incomum no âmbito do que se tem chamado de centro do
espectro político. A dificuldade desse campo construir alternativas politicas
viáveis na arena eleitoral presidencial possivelmente tem a ver com a lógica
parlamentarista que costuma guiar a práxis dos seus quadros. Nesse sentido,
Mandetta é um ponto fora da curva, porque funde uma prudência política
centrista e afeita à arena parlamentar, com a conduta assertiva nos campos da
gestão e da comunicação política, típica de protagonistas da arena de competição presidencial.
Por
esse motivo penso que está em patamar diverso de outros nomes do chamado
centro, que se concentram em entendimentos interpartidários, típicos da arena
parlamentar, como possíveis plataformas de lançamento a projetos voltados a
eleições majoritárias. Será bom caminho trocar a imagem do médico que não
abandona o paciente pela de pré-candidato à procura de um partido? Ademais ele
já faz parte de um, cujo rumo em 2022 é incerto e influenciável pela paciência.
Visitar a planície do mercado partidário agora não parece ser caminho para que
ele contribua efetivamente ao debate nacional em momento de emergência sanitária. O diálogo com parlamentares e partidos pode
correr frouxo e a eles poderá retornar sempre, amarrando as coisas no devido
tempo e com suficiente familiaridade porque outsider não é e possui,
além do mais, posição ideológica clara, que costuma declarar. Sem ser de
esquerda e jamais cogitar sê-lo, pode com ela dialogar e pontualmente
convergir. Sendo da centro-direita e sem deixar de sê-lo, pode, dentro dela,
divergir e levá-la a viagens mais interessantes do que as cercanias do palácio.
Se nada disso ocorrer, mais uma vez, paciência. Terá travado o bom combate,
numa emergência.
*Cientista político e professor da UFBa
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