Gangues
pró-Trump usam símbolos do ex-ditador chileno e se inspiram em grupos
paramilitares como o Patria y Liberdad, bancado pela CIA e surgido no Chile
logo após a eleição de Salvador Allende
A
cobra fumou. Tem muito tempo: 76 anos. Era uma jararaca e simbolizava a FEB
(Força Expedicionária Brasileira), que, surpreendendo a descrença geral,
fumou—ou seja, finalmente foi para a Itália lutar contra Mussolini e Hitler.
Uma cobra do bem.
As lendas amazônicas e a poesia de Raul Bopp nos legaram a Cobra Norato, a serpente emplumada de maias e astecas inspiraram D. H. Lawrence, mas não esperem boa coisa do ofídio batizado pelos gringos de “Hoppean snake” (ou a cobra de Hoppe). Hoppe, não Hopper (Edward), que nunca foi de pintar animais invertebrados.
Cascavel
enroscada, com um quepe militar na cabeça, a cobra hoppeana virou uma espécie
de suástica dos baderneiros de extrema direita americanos, onipresentes nos
ralis trumpistas e ativíssimos naquela invasão do Congresso americano,
incitando o desacato e o terror.
Os
serviços de segurança, mesmo sob Trump, já estavam em seu rastro; com Biden na
presidência, a vigilância deverá redobrar, tantas já foram as ameaças dos
neofascistas de sabotar instalações elétricas, o sistema de telecomunicações,
os serviços de saúde e outras variedades de terrorismo detectadas nas últimas
semanas.
Os
criadores dessa víbora inspiraram-se na que adorna a “bandeira de Gadsden”,
pavilhão projetado há 246 anos pelo político e soldado Christopher Gadsden, por
inspiração de Benjamin Franklin, para simbolizar as colônias americanas que se
rebelaram contra os colonizadores ingleses e alimentar-lhes a patriótica
beligerância. A inscrição que a acompanha (“Não pise em mim”) era uma
advertência: pacífica, ela só atacava se fosse atacada. Outra cobra do bem, no
caso, a serviço da Revolução Americana.
Sua
filha bastarda, a peçonha de Hoppe, nem o Butantã talvez a aceitasse em seu
ofidiário.
O quepe que ela ostenta na cabeça é o do general Augusto Pinochet, sanguinário e corrupto ditador do Chile de 1973 a 1990, que, por não ter tido sucessores, encarnou solito a tirania que implantou sobre o cadáver de Allende. O helicóptero que também ilustra os estandartes e as camisetas da malta paramilitar machista vidrada em Trump (Boogaloo Boys, Proud Boys, Three Percenters e Oath Keepers) é uma réplica dos que transportavam presos políticos para despejá-los, vivos, nas águas do oceano, um dos highlights do programa de extermínio do regime pinochetista.
A
aparentemente bizarra fixação de organizações políticas neofascistas americanas
por Pinochet e a fetichização de sua parafernália repressivo-militar intrigaram
o jornalista Christopher Chatham, que sobre elas produziu uma informativa
reportagem para o Intercept, na semana passada. Chatham descobriu parentescos
entre as gangues trumpistas e o grupo paramilitar Patria y Liberdad, bancado
pela CIA e surgido no Chile logo após a eleição de Allende.
A
chave do fetiche está no nome da cobra. Hoppe é uma homenagem ao alemão de
origem Hans-Hermann Hoppe, que dá aulas de economia na Universidade de Nevada,
em Las Vegas, e amealhou seguidores como doutrinador da “economia libertária”
de matriz austríaca, estufa do anarcocapitalismo, cujo objetivo supremo é a
eliminação do Estado e a proteção à soberania do indivíduo e do “livre
mercado”.
Bagrinho
e idólatra de Ludwig von Mises, que formou com Friedrich von Hayek a dupla
dinâmica do libertarismo econômico, Hoppe tem livros traduzidos no Brasil pelo
think tank Mises Brasil. O mais conhecido, “Democracia, o Deus que Falhou”,
copiou o título (“The God That Failed”) de uma histórica coletânea de ensaios sobre
a desilusão com o comunismo de seis notáveis intelectuais (André Gide, Arthur
Koestler, Louis Fischer, Ignazio Silone, Stephen Spender e Richard Wright)
publicada em 1949 e entre nós traduzida nove anos depois.
Para
Hoppe, comunismo e democracia são farinhas do mesmo saco, que ele rejeita com o
vigor de um fanático apologista do mais puro darwinismo social. O fim justifica
os meios, o sufrágio universal é uma opressiva intervenção estatista, é preciso
desmantelar os programas de bem-estar social, privatizando em massa as
empresas públicas e desregulando as corporações—a tais ideias peçonhentas
outras foram agregadas, como, por exemplo, a remoção física de indesejáveis
(comunistas, homossexuais etc) para manter a ordem numa sociedade libertária
autêntica.
OK,
mas por que o Chile, por que Pinochet?
Chatham
lembra que Hayek foi, junto com Milton Friedman, um dos embaixadores do
neoliberalismo no Chile de Pinochet, ao qual Paulo Guedes, o Posto Ipiranga,
também prestou serviço. Hayek ficou amigo do soba andino, visitou Santiago, mas
não teve nada a ver, pessoalmente, com o enriquecimento ilícito do ditador,
embora as fraudes cometidas pelo general possam ter sido amplamente facilitadas
pelo afrouxamento regulatório aviado por Hayek e conselheiros ideologicamente
identificados com os anarcocapitalistas de Viena e Chicago.
A ditadura de Pinochet deixou um saldo de 3000 mortos e mais de mil desaparecidos. Pinochet conseguiu driblar tanto a Justiça, que acabou morrendo antes de ser exemplarmente julgado e punido por crimes bem maiores que sua roubalheira, como foram vários de seus cúmplices no reinado de terror instaurado no Chile em setembro de 1973. Lá, os Ustras que aqui são idolatrados por Bolsonaro, Mourão e, implicitamente, pelo autoritário general Eduardo Villas Boas, tiveram de prestar contas com a Justiça. No Chile, a cobra do bem já fumou.
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