quinta-feira, 18 de março de 2021

Cora Rónai – A tesoura e a Covid

- O Globo

O drama é que a Covid-19 ainda é recente demais para que se possa saber a extensão dos estragos que faz conosco

Um dos objetos mais usados aqui em casa é uma tesoura de cozinha desmontável, composta por duas lâminas com um encaixe no meio. Ela faz papel de tesoura, faca, quebra-nozes, trinchante, abridor de potes teimosos, auxiliar de desempacotamento de encomendas. Estava servindo nessa última função quando o telefone tocou e eu atendi. Era uma conversa longa. Fui para a sala, olhei pela janela, me espichei no sofá, me desespichei, voltei lá para dentro — e nunca mais consegui descobrir onde ficou a metade de tesoura que estava na minha mão.

Isso foi há duas semanas. Procurei em todos os cantos possíveis e impossíveis. Desapareceu. Tive de comprar outra igual, e agora tenho três metades de tesoura. Não tenho coragem de jogar fora a que está sobrando porque estou convencida de que, assim que ela for para o lixo, a sua parceira vai aparecer.

A tesoura descasada é só a ponta de um iceberg de pequenas calamidades. À medida em que a pandemia avança, os dias ficam mais e mais difíceis. Faço café e me esqueço de tomar, me levanto cheia de determinação da escrivaninha e assim que chego à porta do escritório já não sei mais para onde ia, faço um mesmo pagamento duas vezes e não me lembro de pagar outras contas.

Não tenho coragem de abrir a mailbox porque há mensagens que precisam de resposta, fujo do zap e do messenger, paro no meio dos filmes, pego o livro da vez e não tenho memória de ter lido as páginas que o marcador assegura que eu li: preciso voltar tanto, de cada vez, que não leio um livro de 200 páginas por menos de 500.

Recebi flores lindas mas estava cuidando dos gatos e não pude agradecer na hora; só dias depois, trocando a água do jarro, é que me dei conta da grosseria.

Já li o suficiente sobre a Covid-19 para saber que esse novo life style — à falta de melhor palavra — é consequência da virose. Um estudo realizado aqui mesmo no Brasil, no ano passado, descobriu que “o vírus promove alterações significativas na estrutura do córtex, a região do cérebro mais rica em neurônios e responsável por funções complexas como memória, atenção, consciência e linguagem”.

Essas aspas, pescadas da Agência Fapesp, me provaram, mais uma vez, que a ignorância é uma benção: agora, além de tudo, estou preocupada com o meu córtex cerebral, no qual nunca mais tinha pensado desde que aprendi que existia.

Um ótimo artigo de Ellen Cushing, publicado na revista “The Atlantic” do último dia 8, me tranquilizou um pouco. Ela descreve sintomas parecidos com os meus em diversas pessoas, inclusive em si mesma, mas, depois de conversar com especialistas, os atribui ao que define com “late pandemic”, pandemia tardia — uma mistura de trauma, tédio, estresse e inatividade prolongados. Ou seja: talvez eles também passem quando o resto passar. Mike Yassa, um neurocientista da Universidade da Califórnia em Irvine, diz que estamos todos andando por aí com “algum comprometimento cognitivo leve”.

O drama é que a Covid-19 ainda é recente demais para que se possa saber a extensão dos estragos que faz conosco. Consigo conviver com a dor sutil que sinto nas juntas dos dedos, mas gostaria de não precisar comprar novamente uma tesoura de cozinha desmontável.

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