17/03/2021
Troca na Saúde é último blefe de Bolsonaro, que faz política não como investidor racional, mas como jogador inveterado
Jair Bolsonaro parece tomar novas atitudes em relação à pandemia, em reação a eventos incômodos decorrentes de suas próprias escolhas anteriores. A mais importante é a própria condução da política sanitária, se é que pode ser chamada assim. Não é muito fácil compreender a lógica das decisões de Bolsonaro para lidar com tal problema. Racionalmente faria sentido investir desde o início em medidas de contenção do contágio e, depois disso, na vacinação, assegurando o mais rapidamente possível a chamada “imunidade de rebanho”, permitindo a retomada da vida normal e, com ela, da economia.
Bolsonaro,
porém, não é um investidor, mas um apostador. Por isso optou desde o princípio
por sabotar as medidas de isolamento social, repudiar as vacinas e apostar na
promoção de medicamentos sem eficácia comprovada, como a cloroquina. Como
explicar isso racionalmente?
O presidente fez uma aposta: melhor manter as atividades normalmente, não apesar do contágio, mas exatamente para o produzir; assim, obter-se-ia a imunidade de rebanho e, com ela, a superação da pandemia sem maiores sacrifícios econômicos. As centenas de milhares de mortes advindas desse darwinismo vulgar seriam apenas efeito colateral inevitável; afinal, para Bolsonaro, um dia todos vão morrer e é preciso enfrentar a coisa de peito aberto, sem frescuras.
Mesmo
diante das evidências de que isso não funciona, o presidente não só se manteve
firme na aposta, mas a cobriu seguidamente. Seu comportamento é similar ao de
um jogador adicto do jogo num cassino: mesmo perdendo, segue apostando cada vez
mais, acreditando que em algum momento ganhará e, assim, não só recuperará o
que perdeu, mas ainda sairá com saldo positivo. Assim, aposta todo dinheiro que
tem, a casa, o carro e até as roupas do corpo. Sai depauperado e devendo para
agiotas, mas não consegue fazer diferente. Num tal comportamento a
racionalidade só opera no horizonte mais imediato, o do próprio jogo, com as
táticas que lhe são inerentes. No conjunto das atitudes, inclusive na opção por
seguir apostando, a despeito do desastre, o que prevalece é o irracionalismo do
vício.
O
bolsonarismo se alicerça sobre um irracionalismo de base. É daí que se origina
seu negacionismo, seu extremismo e se produz sua perversidade. Por isso a
insensibilidade diante das montanhas de mortos. Assim como a dilapidação do
patrimônio do jogador, as mortes de seus governados são - para ele - mero
efeito colateral do que realmente importa: a emoção do jogo, traduzido aqui na
busca pela reeleição e pela concentração de poder. Esquemas tradicionais de
compreensão das escolhas de políticas públicas explicam mal tais opções, pois
supõem uma racionalidade mais ampla - que, mais do que tática, seria
estratégica. O irracionalismo político, como o do jogador autodestrutivo, só
obtém realização na catástrofe.
Porém,
nos momentos em que é acuado, Bolsonaro recua. Investigações que recaem sobre
sua família, perda de popularidade produzida pela percepção de má gestão
sanitária e ameaça eleitoral personificada por Lula lhe atemorizam e produzem,
no curtíssimo prazo, refugadas. Como o jogador que blefa para iludir
adversários, o presidente simula moderação, fala menos, admite a importância
das vacinas, usa máscaras, exibe um globo terrestre em sua live e troca de
ministro da Saúde. O blefe dura até o momento em que volta se sentir confortável,
e retoma a carga irracional que lhe caracteriza. A racionalidade do recuo é
apenas tática e se esgota nos lances do jogo e seus ganhos imediatos, mas não
na opção por desistir de seguir apostando e (se) arruinando.
A
troca do ministro da Saúde foi seu último lance desse modo de atuar. Depois de
meses de fidelidade canina ao presidente, acatando passivamente todas as suas
determinações mais estapafúrdias e desmoralizando a imagem de competência
técnica dos militares, o general Eduardo Pazuello, já muito desgastado,
inutilizado como anteparo, foi descartado, pois se tornou inútil aos propósitos
presidenciais. Assim como o time que troca de técnico numa fase ruim, o
presidente buscou outro nome.
Contudo,
para ser ministro de Bolsonaro é preciso ser invertebrado. Qualquer
profissional da área da saúde menos propenso a acatar ordens estapafúrdias e se
curvar servilmente ao absurdo, não serve. E, como a saúde virou outra arena
para a guerra cultural bolsonaresca, também ali as crenças motivadas pela ideologia
devem se sobrepor ao conhecimento científico e à prudência. Não por acaso, as
milícias digitais e reais do bolsonarismo se mobilizaram para destruir qualquer
mínima possibilidade de indicação de uma médica de posições favoráveis ao óbvio
- como era o caso de Ludhmila Hajjar.
Na
operação que levou ao descarte da médica, Bolsonaro mobilizou aquilo que o
afeto sugere e que é sempre sua opção preferencial: os três filhos. Na sabatina
da pretensa ministra, estava o 03, Eduardo, para lhe passar o crivo ideológico
- como no questionamento acerca de sua posição sobre armas. Na mobilização das
milícias digitais estava o 02, Carlos, chefe do Gabinete do Ódio. E no
apadrinhamento ao nome que, ao fim, prevaleceu (o médico Marcelo Queiroga)
estava o filho 01, Flávio.
Não
vingaram os possíveis nomes patrocinados pelos neoaliados do Centrão, como
Hajjar e o deputado Dr. Luizinho. O que prevaleceu foi a escolha de um
“bolsonarista raiz” disposto a obedecer ao presidente, mesmo que publicamente
dando declarações ambíguas sobre o que levar mais em consideração: a lealdade
aos caprichos do chefe, ou a missão do ministério que dirigirá. Mas isso é o
que se espera, ao menos por algum tempo, considerada a nova fase de Bolsonaro -
que é o real ministro da Saúde. Para blefar, simulando adesão aos preceitos
científicos da saúde pública, a ambiguidade do novo ministro vem bem a calhar.
Substantivamente, são improváveis mudanças significativas.
A
nova aposta em breve cobrará em mortes (e mortos não produzem, não consomem e
são capital humano desperdiçado) e no desgaste da relação com o Centrão.
*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
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