Intelectual
pernambucano ensinou ao mundo como a fome é sempre uma decisão política
A
pesquisa “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança
alimentar no Brasil”, realizada pelo grupo Alimento Para Justiça, da Universidade
Livre de Berlim, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais e a
Universidade de Brasília, apontou para o fato de que até
o final do ano passado 59,4% dos brasileiros enfrentavam algum grau de
insegurança alimentar.
A
fome não é um problema inédito no Brasil. Tanto é assim que foi questão central
de importantes obras da cultura brasileira. Lembremos de Fabiano e seus
filhos vagando pelo sertão em “Vidas Secas”. Ou das andanças de Chico Bento
em “O Quinze”, de Rachel de Queiroz. Na mesma trilha, a pintura “Os
Retirantes”, de Cândido Portinari, retrata a tentativa de fuga da seca, da fome
e da miséria. “Ilha das Flores”, documentário de Jorge Furtado, nos apresenta a
profunda sombra de indignidade que a fome projeta sobre os seres humanos.
Para além de seu valor estético, as obras acima nos fazem sentir que a fome não é um acaso e tampouco resulta de determinações biológicas ou geográficas; a fome é o resultado de escolhas políticas. No fim das contas são as decisões sobre a organização da sociedade que definem quem terá ou não um prato de comida.
Os
regimes de propriedade privada, as formas de organização do trabalho, o sistema
de produção e distribuição de alimentos e suas conexões com a lógica de
reprodução do capitalismo em níveis global e local são determinantes para a
compreensão da fome como um fenômeno sociopolítico.
Todavia,
uma análise científica da fome só pode se pretender completa com a menção
à obra
de Josué de Castro. Médico, geógrafo, nutrólogo, professor, cientista
social, diplomata e político, foi o maior estudioso do tema da fome que o mundo
conheceu.
É
mérito deste brasileiro, nascido no Recife, o tratamento da fome “como um complexo
de manifestações simultaneamente biológicas, econômicas e sociais”. Jean
Ziegler, relator para a ONU sobre o direito à alimentação entre 2000 e 2008,
afirmou que Josué de Castro deveria “ter um monumento em cada cidade do país,
porque é um dos maiores pensadores do século 20”.
Dos
vários escritos de Josué de Castro, destacam-se “Geografia da Fome” e
“Geopolítica da Fome”. Nestes livros, a fome é tratada como um problema
decorrente das contradições da organização econômica capitalista em seus
diferentes estágios de desenvolvimento e formações histórico-espaciais.
No
caso específico do Brasil, a monocultura —que gera a deficiência alimentar— e o
latifúndio —que produz a fome— são centrais na criação das condições que levam
as populações à tragédia da fome. Para Josué de Castro o enfrentamento da fome
é, antes de tudo, a luta contra o subdesenvolvimento. Na sua visão, seria
preciso libertar a agricultura dos freios do colonialismo e, assim, “libertar o
povo das marcas infamantes da fome”.
Considerando-se
o Brasil atual, o
pagamento de um valor decente de auxílio emergencial, a implementação de
políticas de apoio a micro, pequenos e médios empresários, assim como a adoção
de medidas de controle da pandemia seriam cruciais para o enfrentamento da
fome. Mas não é só isso: seria preciso uma mudança significativa nas estruturas
econômica e política do país.
Tais
mudanças incluem o fortalecimento da soberania nacional, a realização da
reforma agrária, a priorização do povo brasileiro nas políticas alimentares, o
investimento em ciência e tecnologia, a implementação de medidas de preservação
ambiental e a insubmissão da produção de alimentos à lógica da mercadoria.
*Professor da Fundação Getulio Vargas e do Mackenzie e presidente do Instituto Luiz Gama.
Nenhum comentário:
Postar um comentário