Nada
mais em linha com o papel indutor do Estado no desenvolvimento de longo prazo
do que o plano recém-anunciado pelo atual presidente
Diretamente de Washington D.C., vejo com curiosidade a maneira como a imprensa brasileira tem repercutido o plano do presidente Joe Biden para aprimorar a infraestrutura do país e deslanchar sua dupla agenda de proteção social e combate às mudanças climáticas. Curiosidade e também alguma graça. Persiste no Brasil a ideia de que os Estados Unidos são o exemplo de país em que o desenvolvimento se deu pela iniciativa privada, sem protagonismo do Estado. A ideia é errada e mostra um profundo desconhecimento da história do país. E o desconhecimento histórico, nesse caso, não é inofensivo, porque acaba servindo para afastar os aspectos positivos do Estado indutor, em argumentos simplórios, que apresentam apenas seus aspectos negativos, que de fato existem. Tenta-se revitalizar, com esse tipo de construção, a noção de que o Estado protagonista só traz ineficiências, como se o mundo pudesse ser simplificado para caber no que tenho chamado de “liberalismo à brasileira”.
Os
Estados Unidos se industrializaram tardiamente, assim como a Alemanha e o Japão,
quando se tem o Reino Unido como termo de comparação. A industrialização
americana aconteceu na segunda metade do século XIX e foi extremamente rápida:
no fim do século, os EUA já rivalizavam com o Reino Unido no comércio
internacional. A industrialização no país seguiu alguns dos princípios
estabelecidos por Alexander Hamilton — o primeiro secretário do Tesouro — no
final do século XVIII. Em sua obra Report
on the subject of manufactures, publicada em 1791, Hamilton elabora
os princípios da industrialização destacando que o desenvolvimento nacional
requeria medidas que discriminassem a favor dos produtores locais. Portanto,
argumentava Hamilton, o processo de industrialização teria de se ancorar em
dois eixos principais: o protecionismo e a substituição de importações. Alguns
anos mais tarde, Friedrich List iria se valer de argumentos semelhantes para
tratar da industrialização alemã. O interessante é que List o faria a partir de
suas observações em relação ao que se passava nos Estados Unidos, onde residira
antes da publicação de Sistema
nacional de economia política, em 1841. Tanto Hamilton quanto List
exerceram grande influência sobre o papel do Estado na industrialização
americana. Ao final do século XIX, os grandes conglomerados industriais
deveriam sua existência ao Estado indutor do desenvolvimento.
Para
o desgosto de alguns no Brasil, o “desenvolvimentismo” marcou, assim, a
ascensão da economia americana e continuaria a se fazer presente, em maior ou
menor intensidade, nas muitas décadas que se seguiram. Em 1934, estaria lá o
Estado para socorrer o país da Grande Depressão. A corrida espacial e o
complexo tecnológico que a possibilitou durante a Guerra Fria não teriam sido
possíveis sem o papel do Estado. Nos anos 1980 e no início dos anos 1990, a
internet foi concebida e desenvolvida pelo governo americano. Todo o setor de
tecnologia de informação hoje existente não teria se formado sem o
financiamento do Estado. Por fim, e essa não é uma lista exaustiva, os Estados
Unidos não seriam dominantes na área de biotecnologia sem o papel do Estado.
Esse domínio, hoje, está mais visível do que nunca no desenvolvimento das
vacinas contra a Covid-19: as vacinas gênicas da Pfizer e da Moderna, que usam
tecnologia mais sofisticada, foram possíveis graças a financiamento e contratos
de compra no âmbito da Operação Warp Speed.
É
nesse contexto que se insere o Plano Biden. Nada mais em linha com o papel
indutor do Estado no desenvolvimento de longo prazo do que o plano
recém-anunciado pelo atual presidente.
Ele
prevê investimentos maciços em áreas diversas e seu tamanho — todo o PIB do
Brasil — deixou alguns assombrados. É curiosa essa reação. Trata-se do país
emissor da moeda de reserva internacional, o dólar, anunciando um plano
ambicioso e caro, como fez em diferentes momentos ao longo de sua história.
Mas, para muitos, parece que essa história não existe, ou foi reinterpretada à
luz de um punhado de anos em que reinou suprema a ultraortodoxia da Escola de
Chicago, que não mais existe aqui nos Estados Unidos.
Os
“liberais à brasileira” vão ter de se conformar com o “desenvolvimentismo” de
Biden. O mais saboroso? Serão testemunhas do quão acertado o plano é para o
momento atual.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkin
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