Com
um governo negacionista como o de Bolsonaro despontamos para o atraso
Não
é fácil entender a política brasileira, mas quem se detiver, esta semana, nos
dois mais intrincados nós a serem desatados em Brasília talvez chegue a algumas
conclusões interessantes. Os dois nós são a CPI da pandemia e a inadequação do
Orçamento da União.
No
primeiro, o governo é acusado de omissão no processo de combate ao vírus que já
nos custou mais de 360 mil vidas e poderá custar 600 mil até julho, segundo
prognósticos da Universidade de Washington. Acusações e mesmo investigações
sobre a atuação de Bolsonaro na pandemia não são novas. Há processos no
Tribunal Internacional de Haia e inquéritos como o das mortes em Manaus, em que
Eduardo Pazuello é o principal investigado.
Bolsonaro
é acusado de negacionismo e, realmente, tem negado a importância da pandemia
desde o início. Era previsível que surgisse uma CPI sobre o tema no Congresso,
uma vez que os parlamentares estavam de quarentena, mas não mortos.
Eleito
com apoio de Bolsonaro, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, bloqueou a
instalação da CPI. Quando, numa entrevista, perguntei a razão do bloqueio, ele
respondeu com os argumentos usais de que é preciso união, foco no combate à
doença. Na verdade, usou o argumento da própria pandemia para negar direitos
legais, algo que muitos governos autoritários tentam fazer no mundo.
A reação de Bolsonaro à CPI foi uma nova forma de demonstrar seu negacionismo. Ele sabe que CPI, além do número legal de assinaturas, precisa de fato determinado. Na conversa gravada com o senador Kajuru, ele pede que a investigação seja estendida aos prefeitos e governadores. É preciso investigar tudo, diz ele. E nós sabemos que essa é a senha para não investigar nada.
A
proposta é quase tão absurda quanto chamar a covid-19 de gripezinha ou insinuar
que a vacina transforma gente em jacaré. O Senado teria de usar seus recursos
limitados para investigar todo o Brasil, sabendo que 11 Estados já fazem essa
investigação e em dois, Rio de Janeiro e Santa Catarina, os governadores
investigados já foram afastados do cargo.
Isso
tudo sem contar o fato de que a Polícia Federal trabalha no tema em nove
Estados e já recuperou em torno de R$ 7 milhões desviados, até com incursões em
gabinetes de governador, como no caso de Helder Barbalho, no Pará.
Bolsonaro
convidou o Senado à dispersão de esforços para se proteger. E não satisfeito em
lançar mão de Estados e municípios como escudo, quer que se abram processos
contra ministros do Supremo.
São
duas lições importantes sobre a política no Brasil. Acusados tentam sempre
ampliar as investigações para desaparecerem nela, e quase sempre alegam que
todos estão errados. No caso, a ideia é pôr a limitada estrutura do Senado a
investigar todo o Brasil e, simultaneamente, tentar cassar membros do Poder
Judiciário.
Em
outras palavras, a melhor maneira de investigar a omissão criminosa de
Bolsonaro é uma ofuscante e laboriosa atividade cujo resultado pode ser nulo. É
uma nova pirueta do negacionismo. Não houve pandemia, muito menos responsáveis
pela mortandade. A CPI seria apenas, como em Macbeth, uma história,
contada por idiotas, cheia de som e fúria, significando nada.
O
nó do Orçamento também é interessante, por mostrar que se tornou um instrumento
tão precário que não serve nem para um desgoverno como esse que existe hoje no
Brasil. Negociações medíocres entre governo e Congresso acabaram fazendo a
balança pender para alguns ministérios e, sobretudo, para o lado dos
parlamentares.
Não
se sabe onde vai parar parte do dinheiro da Previdência, do seguro-desemprego,
do financiamento da agricultura familiar. O próprio Paulo Guedes afirma que com
esse Orçamento é impossível prosseguir e teme até o impeachment de Bolsonaro.
Como sempre, a conta está um pouco mais alta: R$ 33 bilhões.
O
que é esclarecedor sobre o Brasil são as soluções discutidas nos bastidores.
Aí, sim, o observador conhecerá um pouco da nossa cultura, seguindo o debate.
Uma das propostas para livrar Bolsonaro de processo é uma viagem ao exterior. O
Orçamento seria assinado por Arthur Lira, que já está queimado mesmo e serviria
de escudo para o presidente.
Também
muito didática é a troca de ideias entre Guedes e os parlamentares. O ministro
propõe que sejam cortados os R$ 33 bilhões e se façam ajustes lá na frente. Os
parlamentares propõem que sejam mantidos e se façam ajustes lá na frente. Uma
ausência tão completa de planejamento é também uma espécie de negação do
governo. O Orçamento é apenas para tocar os assuntos correntes.
O
problema é que essa ausência de governo real assusta até o mercado. Hoje apenas
por ser uma dispendiosa ausência. Logo o próprio mercado sentirá falta de um
governo com projetos de renovação pós-pandemia.
Nos
Estados Unidos discute-se uma nova relação entre governo e forças produtivas,
trabalha-se com a consciência de um desastre climático, aprofunda-se a
experiência digital. O Brasil costuma levar alguns anos para se sintonizar com
o mundo. Quase sempre foi assim, mas com um governo negacionista certamente
despontamos para o atraso.
*Jornalista
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