- O Globo
Não pensemos que a recente mensagem
antimáscara de Bolsonaro seja mera isca para desviar atenções. Nem sempre é
isso ou só isso. Sabe-se que o sujeito tem razões para produzir fumaça. Está
acuado pela CPI; pela revelação de que, presidente da República, mobilizara-se
— como um lobista, falando ao primeiro-ministro da Índia — para defender os
interesses de empresas privadas importadoras de insumos à produção brasileira
de cloroquina. E isso enquanto a comissão inicia a etapa de quebra de sigilos.
Razões para que a rede bolsonarista
dedique-se ao diversionismo e tente levar a pauta a outro terreno. Exemplo do
emprego bem-sucedido dessa tática desviante é haver tomado o último fim de
semana o debate sobre se terá sido a motocada blasfema do mito a maior da
história da humanidade.
Sim: fumaça. Mas não somente. A mensagem de um presidente é sempre influente. Tanto mais se um populista. Ele sopra o apito. Fala a seus sectários. O recado chega à ponta. Chegou. O disparo antimáscara foi certeiro. A pregação cumpriu o objetivo. Mais tarde, conforme o padrão, Bolsonaro mudaria — ajustaria — a embocadura. É como procede. E então o que era um parecer ultimado — vendido com a gravidade de um decreto — transforma-se num pedido, não impositivo, de estudo ao novo Pazuello, um tal de Queiroga. Repito: o tiro já alcançara a meta, inclusive a de humilhar o ministro da Saúde, um Pazuello que usa máscara.
O ministro da Saúde é — sempre foi —
Bolsonaro. E, para Bolsonaro, a máscara compõe um conjunto opressor — é como o
bolsonarismo subverte e se apropria da ideia de liberdade.
Bolsonaro prega a vida normal, daí por que
minimize — desde o início da peste — a gravidade do vírus. Por isso quis a Copa
América. Vida normal. Povo na rua. Por isso aglomera. Uma compreensão que
integra a lógica da imunidade de rebanho em que investiu como política de
Estado — e a que esteve subordinada a difusão do tratamento precoce. Pela
ordem: propagar a cloroquina como proteção contra o vírus, instilar confiança
nas pessoas para que fossem às ruas — e para que se contaminassem, sem
interromper atividades, até o que seria a imunização coletiva.
Essa projeção explicará o último
quadrimestre de 2020, e por que não se cuidou de contratar o maior número de
vacinas para o quanto antes. Os celerados pensavam que não seria necessário.
Apostou-se na imunidade por contágio e em que, por esse motivo, entraríamos em
2021 com a pandemia em decadência — o Brasil a ser um caso de sucesso para
estudo. Essa também sendo a razão por que se deixou cessar o auxílio
emergencial em dezembro. Guedes e seus osmar-terras apostaram num crescimento
econômico que contemplaria os mais pobres a partir de janeiro — o que ainda não
conseguiram seis meses depois.
Sem dúvida que o país se constituiu em caso
a ser estudado. O experimento social, que teria Manaus como cobaia, falhou
miseravelmente; graças a um governo que, por meio de placebo, operou pela
sustentação artificial do vírus entre nós. Acercamo-nos dos 500 mil mortos — e
com os sobreviventes pobres ainda mais pobres. O bolsonarismo, porém, não
desiste. Não tardou para que degenerasse a perversão em nova variante. E agora
temos a teoria conspiratória de que haveria supernotificação de vítimas como
forma de desqualificar — de criminalizar — o tratamento precoce.
É sob essa versão que o presidente tem
afirmado ser o Brasil um dos países em que menos se morre por Covid-19, graças
à cloroquina, mas que isso nos seria omitido pela manipulação dos números. Obra
do establishment, dos governadores ditadores e corruptos. Diz Bolsonaro que o
tratamento precoce funciona; que não seriam quase 500 mil os ceifados. E faz
isso — o presidente da República — valendo-se de um documento fraudado,
atribuído ao TCU e inserido no sistema do tribunal por um auditor bolsonarista.
Eis a página — de corrupção institucional — em que estamos. Chegou-se mesmo ao
ponto em que fanáticos confrontam o TCU com a peça que o TCU afirma ser falsa.
Eis a página — de corrupção dos fatos —em que estamos.
É claro que Bolsonaro investirá contra a
vacina, apregoando-a — em mentira consciente e criminosa — como experimental.
(Um investimento também contra a Anvisa.) É claro que investirá contra o uso de
máscara. A guerra artificial que o bolsonarismo trava: a máscara como uma
espécie de lockdown individual — a máscara como inimiga imaginária e
instrumento de controle social na mão de tiranos à espreita. A mensagem tem
apelo popular. Vender normalidade é popular. É o que faz Bolsonaro, o defensor
das liberdades.
Repito: ele é um populista, líder sectário.
Fala, pois, para parcela específica da sociedade. Mas pode ir novamente além.
Porque capta o cansaço das pessoas. Percebe que há mesmo uma queda — um
relaxamento — no uso de proteção e se associa à onda. Bolsonaro é um girassol
publicitário. Vira-se, orienta-se, para onde está o calor. Tem faro. E, a
rigor, explora tendências que ele mesmo ajudou a criar e difundir via zap
profundo. Mente e atinge; sendo o desmentido sem efeito.
As pessoas estão cansadas da pandemia e — ante a perspectiva de se vacinar — baixam a guarda; buscam quem lhes confirme os anseios. Bolsonaro é depravado: explora um fastio relativo a uma doença que ele trabalhou para que se alongasse entre nós.
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