terça-feira, 15 de junho de 2021

Eliane Cantanhêde – Obras exigem manutenção

- O Estado de S. Paulo

É tempo de revisitar a redemocratização, espetacular obra de engenharia política do Brasil

Depois de apoiar a ditadura militar durante anos na Arena e no PDS, os então senadores Marco Maciel (PE), Guilherme Palmeira (AL) e Jorge Bornhausen (SC) tiveram um papel relevante ao liderar a dissidência parlamentar e aderir ativamente às “Diretas-Já” e à articulação para a eleição do oposicionista Tancredo Neves, do MDB, em 1984. 

Ex-governador de Pernambuco e vice-presidente nos oito anos de Fernando Henrique Cardoso, Marco Maciel morreu no sábado de covid, agravada por uma longa doença. Ex-governador de Alagoas, Guilherme Palmeira morreu em maio do ano passado. Ex-governador de Santa Catarina, Bornhausen continua curioso e ativo, aos 83 anos, na iniciativa privada. 

Alinhados ao general e ex-presidente Ernesto Geisel, mentor e garantidor da “abertura lenta, gradual e segura”, e ao ex-governador de Minas Aureliano Chaves, vice do general João Figueiredo no último governo militar, os três, Maciel, Palmeira e Bornhausen, chacoalharam o PDS, abriram canais com setores militares insatisfeitos com o governo Figueiredo e integraram a heterogênea frente de resistência e de pressão pela redemocratização e as “Diretas-Já”. 

Com o fim da “emenda Dante de Oliveira” na Câmara, por 22 votos, o passo seguinte foi manter e ampliar a frente contra a eleição do ex-governador de São Paulo Paulo Maluf. Era certo e sabido que ele venceria a convenção do PDS, contra os candidatos do governo e da ala geiselista, mas a dissidência do partido foi decisiva para derrotá-lo no colégio eleitoral, ou seja, no Congresso. 

A derrota foi acachapante, o eleito foi o moderado Tancredo e assim o Brasil encerrou 21 anos de torturas, mortes e desaparecimentos, “sem um tiro, sem uma gota de sangue”. O fim do regime não foi em guerra, foi em festa. Maciel, Palmeira e Bornhausen, assim como Aureliano e senadores e governadores como Agripino Maia (RN) e Hugo Napoleão (PI), tiveram lugar assegurado. 

O maranhense José Sarney aderiu num estágio mais avançado e com estardalhaço, ao chegar à convenção nacional do PDS com um revólver na cinta. Governador da Bahia, Antonio Carlos Magalhães, o ACM, só pulou no barco em segurança, com ventos mais amenos. Mas Sarney foi o vice na chapa e virou presidente porque Tancredo adoeceu antes da posse. E ACM se arvorou “dono” do grupo. 

Como os dissidentes liderados por Maciel, Palmeira e Bornhausen já tinham o carimbo de “Frente Liberal”, o partido criado por eles em 1985, primeiro ano da redemocratização, virou o Partido da Frente Liberal (PFL), que se afirmou a ponto de ter Marco Maciel na vice de Fernando Henrique. Um vice que todo presidente pediu a Deus: estudioso, discreto, trazia soluções, não problemas. 

A morte de Marco Maciel traz luzes sobre essa história, tão recente, mas tão esquecida, que contém bons ensinamentos a quem hoje tem liderança e enorme responsabilidade. O primeiro deles é tão velho e surrado quanto útil: a união faz a força, já o preconceito e os interesses puramente pessoais dividem e implodem as melhores estratégias. 

Sair da ditadura exigiu coragem e apoio de trabalhadores, empresários, estudantes, professores, médicos, advogados, jornalistas, Igreja Católica, os melhores cérebros militares e a classe média brasileira. A esquerda assumiu a linha de frente, mas a redemocratização foi uma obra de engenharia de esquerda, centro e direita responsável. 

Como toda obra, exige manutenção constante, principalmente em meio a tensões e riscos às instituições, com o populismo audacioso aglomerando incautos e combatendo não só isolamento, máscaras e vacinas na pandemia, mas a própria democracia. Não custa lembrar: democracia é cheia de defeitos, mas ainda não se inventou nada melhor.

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