Valor Econômico
Parcelar pagamento de precatórios para
abrir espaço para novos gastos soa como nova forma de pedalada fiscal, tão ou
mais grave do que aquelas que foram atribuídas à administração Dilma
No Brasil, não basta apenas o passado ser
incerto. Aqui o presente e o futuro são permanentemente assombrados por
fantasmas de vilões notórios do passado. O recente assassinato do teto dos
gastos pelas mãos do governo Bolsonaro é prova disso. Bolsonaro, com a ajuda do
Congresso Nacional, acaba de trazer de volta a famigerada e catastrófica “Nova
Matriz Econômica” que marcou o governo petista de Dilma Rousseff.
Essa volta de 360 graus colocando o
arcabouço fiscal praticamente na mesma posição em que estava quando do
impeachment de Dilma vai trazer enormes prejuízos para a sociedade brasileira.
No curto prazo, interrompe a recuperação da econômica que se seguiu à pandemia
da covid-19. No médio e longo prazo, em razão do enfraquecimento das
instituições fiscais, põe em risco a solvência do setor público e representa
uma ameaça inflacionária de graves proporções.
Não se trata de catastrofismo. Ao contrário. São abundantes as evidências de que as instituições que sustentam a solvência do setor público estão se enfraquecendo continuadamente nos últimos meses, com a cumplicidade, em maior ou menor grau, dos três Poderes da República. O uso abusivo, em 2021, das emendas de relator para criação de um orçamento paralelo para atender interesses paroquiais de parlamentares, em detrimento de alocações para despesas obrigatórias, deu partida a um ataque generalizado à responsabilidade fiscal, culminando com a proposta do próprio Poder Executivo de violação do teto de gastos para viabilizar um programa de transferência de renda com intuito visivelmente eleitoreiro.
No mesmo contexto, a iniciativa de parcelar
o pagamento de precatórios para abrir espaço para novos gastos soa como uma
nova forma de pedalada fiscal, tão ou mais grave do que aquelas que foram
atribuídas à administração Dilma.
O teto de gastos foi introduzido logo após
os danos produzidos pela “Nova Matriz Econômica” no governo de Dilma Rousseff.
Como âncora fiscal, seu objetivo era o de gerar credibilidade no processo de
reversão do déficit primário herdado do governo petista, inclusive com a
aprovação de reformas estruturais, num horizonte em que se evitaria uma contração
fiscal abrupta com danos recessivos numa economia já enfraquecida. Apesar de
não ser um mecanismo perfeito, a medida logrou efeitos positivos, permitindo a
redução imediata do prêmio de risco e das taxas de juros, beneficiado por certo
também pela recuperação da credibilidade do Banco Central.
O Brasil é conhecido como sendo um país em
que há dois tipos de lei: as que pegam e as que não pegam. Por isso, há aqui
inúmeros dispositivos legais que são letra morta; ninguém se dá ao luxo de
observá-los. Sequer precisam de revogação explícita. A Emenda Constitucional
que criou o teto de gastos começa a seguir essa nefasta tradição. Vai
permanecer inscrita na Carta Magna, mas exceções casuísticas serão tantas que
sua efetividade será zero. Aliás, não será a primeira regra fiscal que cai no
vazio por intepretações e exceções oportunistas. A excelente e inovadora Lei de
Responsabilidade Fiscal sofreu o mesmo processo de enfraquecimento, com
inovações interpretativas que flexibilizaram as restrições formalmente estabelecidas
na Lei.
Desse modo, a reação dos mercados ao
anúncio do abandono do teto de gastos em 2022 com o patrocínio do próprio
ministro da Economia foi mais do que justificada. Com o enfraquecimento do
valor da moeda e o deslocamento para cima da curva de juros, a economia começou
imediatamente a pagar o preço da irresponsabilidade fiscal, numa conjuntura
macroeconômica já difícil pela ocorrência de choques negativos de oferta e
aceleração da inflação.
A propósito, a decisão do último Copom de
acelerar o ritmo de alta da taxa Selic e de sinalizar um ciclo mais longo de
elevação dos juros deveu-se muito à piora das expectativas que derivou do
anúncio do rompimento do teto de gastos, tendo o Comitê avaliado que “os
recentes questionamentos em relação ao arcabouço fiscal elevaram o risco de
desancoragem das expectativas de inflação, aumentando a assimetria altista no
balanço de riscos”.
Com tudo isso, aumentaram em muito as
chances de o crescimento econômico voltar ao terreno negativo em 2022,
agravando um ciclo de baixo crescimento iniciado nos estertores do último
governo petista. Em tal cenário, as condições do mercado de trabalho
continuarão desfavoráveis trazendo prejuízos sociais que nem de longe serão
mitigados por programas de transferências de renda patrocinados pelo governo
federal.
Paira sobre o Brasil o espectro de uma
eleição presidencial polarizada em que a população terá que decidir entre o
diabo e o capeta no que concerne ao compromisso dos candidatos com a
responsabilidade macroeconômica. Tomara que tal situação não se concretize, mas
é inevitável lembrarmos do título de uma celebrada e distópica obra do escritor
Ignácio de Loyola Brandão: “Não verás país nenhum”.
*Gustavo Loyola, doutor em
economia pela EPGE/FGV, foi presidente do Banco Central e é sócio-diretor da
Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo
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