O Estado de S. Paulo
Quando não há mais limites orçamentários, a própria noção de limite político torna-se fluida, sinalizando que nem a Constituição teria de ser obedecida
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC)
dos Precatórios, também dita PEC Fura Teto, tem um forte componente político,
complementar ao da responsabilidade fiscal, garantida em lei e que deveria ser
assumida por qualquer governante sensato. E governante sensato significa alguém
comprometido com a ideia de coisa pública, de bem-estar social de todos os
brasileiros. O problema, hoje, consiste em que até a sensatez do ponto de vista
político tornou-se um bem raro.
Quando a Lei do Teto de Gastos Públicos foi instituída, ela implicava politicamente que houvesse uma redistribuição dos dispêndios e compromissos estatais nos ministérios, tanto internamente do ponto de vista individual quanto em relação aos demais. Ou seja, sua consequência deveria ter sido que os atores políticos discutissem o destino dos recursos públicos tendo como parâmetro limites que, extrapolados, teriam como consequência a piora das contas públicas, repercutindo em mais inflação, menor investimento e menos bem-estar social no médio e no longo prazos.
Os gastos ministeriais não podem ser
considerados como se estivessem congelados para sempre, como se alguma redução
significasse menor atenção para uma determinada área. Gastos públicos deveriam
ser avaliados constantemente, de modo que projetos ineficazes ou caducos seriam
substituídos por outros novos e inovadores. Cada ministério não deveria
considerar a sua “porção” como fixa, não sendo submetida a nenhum tipo de
medição baseada em seu mérito. Eis por que, inclusive, destinações obrigatórias
para determinadas áreas deveriam ser abolidas, uma vez que levam à inércia e a
uma esdrúxula noção de “direito adquirido”, como se estivessem de per se
justificadas socialmente.
Quando surge uma nova demanda social, como
esta decorrente da pandemia, deveria ser obrigatória uma avaliação de todos os
projetos sociais em execução e previstos, dando lugar a novos espaços dentro do
Orçamento existente. Alguma medida porventura emergencial deveria ser
simplesmente isto, emergencial e com prazo determinado, estabelecendo uma
compensação futura. O próximo governo não deveria simplesmente pagar a sua
conta.
Em vez disso, o atual governo prefere
deixar o Orçamento engessado, não mexendo com nenhum privilégio nem fatias dos
recursos assegurados, e parte para romper o teto, destruindo, assim, a própria
noção de responsabilidade fiscal e de orçamento estatal. A política se faria,
então, extra-teto, sem nenhum compromisso com o bem público, coletivo. Uma
política intrateto seria uma política voltada para o convencimento, para o
diálogo, para avalições sistemáticas dos gastos públicos, para novas propostas,
logo, comprometida com o bem comum.
Uma política extra-teto, por sua vez, seria
uma política embasada na desmedida, na irresponsabilidade e, em consequência,
no populismo. Gasta-se mais do que se pode e o futuro da Nação fica, então,
hipotecado. As gerações futuras pagarão o preço dos que não quiseram assumir as
suas responsabilidades de governantes. Na verdade, propostas e ideias nem são
mais debatidas, mas a única preocupação consiste em como se pode gastar mais.
O recente espetáculo Fura Teto tem,
ademais, como consequência um atrelamento da política parlamentar e partidária
aos ganhos extra-teto sob a forma de emendas e cargos que visariam a assegurar
a reeleição do atual mandatário por meio do Auxílio Brasil. A política, nesse
sentido, não se faria na disputa pelo Orçamento, mas em seu desrespeito,
abandonando qualquer noção de bem comum e tendo como único mote o bem particular
de determinados parlamentares e grupos políticos.
Um governante não seria avaliado pelo que
teria feito no interior de uma administração pública responsável, mas pela
“justificativa” utilizada para não ter nenhum compromisso com os gastos do
Estado. No caso, o objetivo eleitoral é explícito e tem como parceiros
deputados e senadores voltados apenas para suas próprias reeleições e
privilégios. Eis mesmo por que se criou a figura, completamente despropositada,
do dito “orçamento secreto”, como se o sigilo dos seus autores fosse garantia
de sua impunidade.
É propriamente uma aberração que
parlamentares inventem um orçamento próprio, por eles controlado, com a
anuência da Presidência da República, empenhada somente com seus ganhos
eleitorais. A política se dilui, evapora, neste arremedo de si mesma. A partir
do momento em que não há mais limites orçamentários, a própria noção de limite
político torna-se fluida, sinalizando que nem a Constituição precisaria ser
obedecida.
Não é, nesse sentido, casual que a PEC Fura
Teto seja também denominada PEC dos Precatórios, que deveria ser mais bem
chamada de PEC de desrespeito aos compromissos assumidos pelo Estado e
legalmente estabelecidos. Um calote dos precatórios significa o rompimento
mesmo da noção política e econômica de contrato.
*Professor de filosofia na UFGRS
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