Conta bilionária dos precatórios um dia chegará
O Globo
Desde já Congresso precisa decidir como
saldar a dívida paralela de 2% do PIB que criou para 2027
Em 2021, mais de três quintos dos deputados
e senadores aprovaram mudanças nos prazos de pagamento de dívidas da União em
que não há mais recurso judicial possível, chamadas precatórios. Até então, os
débitos eram quitados após a decisão da Justiça. Uma emenda constitucional
criou uma espécie de “pendura”. O governo passou a ter um teto anual para
saldar as dívidas. Começou a pagar apenas o equivalente à quantia quitada em
2016, corrigida pela inflação. O resto foi sendo empurrado para depois.
Obra do então presidente Jair Bolsonaro, o plano tinha caráter nitidamente eleitoreiro. O objetivo era criar mais espaço no Orçamento para despesas em 2022, em particular o reajuste no programa Auxílio Brasil. Em prol da malograda campanha pela reeleição, legalizou-se um novo tipo de pedalada. Dados do Relatório Contábil do Tesouro Nacional, revelados pelo GLOBO, mostram o tamanho do estrago. O passivo resultante da irresponsabilidade já chega a RS$ 142 bilhões, um aumento de 41% em relação a 2021.
A regra que permite pendurar o pagamento
dos precatórios vale até 2026. No ano seguinte, o acumulado das dívidas terá de
ser quitado (a não ser que o Parlamento promova outra manobra protelatória).
Ninguém tem a menor ideia de onde o dinheiro sairá. Projeções sugerem que o
total poderá chegar a R$ 245 bilhões em 2027, quase 2% do PIB. O governo atual
terá de achar uma solução para desarmar a bomba, ou ela estourará no colo do
próximo presidente da República.
As lideranças do Congresso, as mesmas da
legislatura anterior, podem argumentar que a iniciativa partiu do governo
Bolsonaro, mas a desculpa é furada. Trabalharam arduamente pela aprovação, que
contou com apoio não apenas da base bolsonarista, mas também de todos aqueles
que não queriam ficar queimados por reduzir verbas de programas sociais. Na
época, não faltaram avisos e críticas sobre o equívoco de emendar a
Constituição para permitir uma farra do gasto. Teria sido perfeitamente
possível reajustar o Auxílio Brasil promovendo cortes noutras rubricas, como as
emendas do relator que alimentavam o orçamento secreto. Mas, posto na balança o
interesse nacional, ele não pesou. Prevaleceu o cálculo político de curtíssimo
prazo.
Só que o curto prazo passa logo, e o longo
prazo um dia chega. Desde já os congressistas precisam refletir sobre como
criar o colchão orçamentário necessário a saldar as dívidas empurradas com a
barriga. Infelizmente, ninguém parece prestar atenção ao tema, como têm
revelado os embates em torno do novo arcabouço fiscal. A Câmara aprovou um projeto
melhor que o apresentado pelo governo, mas o Senado corre o risco de piorá-lo,
abrindo exceções ao limite de gastos e modificando sua correção pela inflação.
Cada retrocesso vem acompanhado de justificativas aparentemente
bem-intencionadas — exatamente como se fez na discussão da emenda dos
precatórios.
Quando a reforma tributária entrar em
pauta, é previsível que deputados e senadores tentem desfigurá-la para atender
a interesses específicos. Oxalá tenham mais sensatez do que exibiram quando
adiaram o pagamento dos precatórios. Por ação ou omissão, o Congresso tem
enorme responsabilidade pelo atraso econômico do Brasil nas últimas décadas.
Está na hora de assumir o protagonismo em mudanças que tragam benefícios no
futuro, e não uma conta bilionária a pagar.
Se prevalecer bom senso, STF não permitirá
criação do juiz de garantias
O Globo
Apesar de ideia parecer sensata na
superfície, engordaria ainda mais o Judiciário mais caro do mundo
Está na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF)
uma decisão que poderá ter impacto em todo o Judiciário: a criação da figura do
juiz de garantias, magistrado em princípio encarregado das fases de instrução
dos processos (que envolve mandados de busca e apreensão, escuta telefônica e
coisas do tipo), mas não do julgamento. A ideia foi importada de países
europeus onde a organização da Justiça é distinta. É defendida por advogados
preocupados com situações em que os papéis de juízes e promotores se confundem.
Mas, apesar de aparentemente sensata, ela não é recomendável.
No modelo atual, um mesmo magistrado atua
desde a fase do inquérito até o veredito final. Em 2019, o Pacote Anticrime
sancionado por Jair Bolsonaro determinou uma divisão. O juiz de garantias
passaria a ser responsável pela primeira parte do trabalho, até o recebimento
da denúncia. Outro juiz, sem conhecimento prévio da investigação, se
encarregaria do julgamento. Em razão disso, dizem os defensores da mudança,
seria mais imparcial.
Uma análise aprofundada mostra, contudo,
que ela não necessariamente representa avanço. O sistema judicial brasileiro já
dispõe de diversos mecanismos para corrigir injustiças. Há três instâncias para
rever o trabalho da primeira. Para que criar mais uma? Além de supérfluo, o
juiz de garantias tornaria ainda mais dispendioso o Judiciário tido como mais
caro do mundo.
Quatro Ações Diretas de
Inconstitucionalidade (ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305) questionam diversas regras
do Pacote Anticrime. Em 2020, o ministro Luiz Fux, relator das quatro,
suspendeu de forma temporária a aplicação da lei. Em sua decisão, foi didático
ao afirmar que a implementação era complexa e exigia a apresentação de
evidências “acima de qualquer dúvida razoável” sobre seus reflexos.
Na semana passada, as partes interessadas
tiveram a oportunidade de apresentar seus argumentos. O representante do
partido Cidadania (ADI 6299) lembrou que não houve estudo sobre o impacto
financeiro das alterações. Segundo ele, as despesas extras poderiam chegar a R$
2,6 bilhões. Entre os gastos supérfluos, magistrados teriam de se deslocar para
comarcas com apenas um juiz, incorrendo em verbas que não estão previstas no já
superlativo orçamento do Judiciário. Mesmo que estivessem, não faria sentido.
Não demoraria para que, de uma hora para outra, a lei servisse de pretexto para
novos cargos de magistrados e toda a estrutura que os acompanha.
Os apoiadores do juiz de garantias usam frases de impacto. Chamam a medida de “avanço civilizatório”. Insistem em lembrar os excessos da Operação Lava-Jato. Enumeram os países onde tal figura existe, como Itália ou Portugal (poucos citam o Paraguai). Fazem referência a trabalhos acadêmicos sobre a “vinculação psicológica” do juiz ao inquérito. Esquecem, porém, o principal: um país como o Brasil tem centenas de prioridades mais urgentes que engordar um Judiciário mastodôntico. Se prevalecer o bom senso, os ministros do STF não permitirão a criação dessa redundância.
Bolsonaro começa no TSE seu longo périplo
judicial
Valor Econômico
Apenas pelo amontoado de ilegalidades
cometidas à luz do dia em 4 anos de mandato, Bolsonaro não escapará da
inelegibilidade
O ex-presidente Jair Bolsonaro inicia
amanhã sua peregrinação pela Justiça - será julgado pela primeira das 16
denúncias consubstanciadas em ações de investigação judicial eleitoral no
Tribunal Superior Eleitoral. Bolsonaro, que sempre defendeu a ditadura militar,
deu motivos diários de desprezo à democracia. Em sua gestão, mais de uma
centena e meia de pedidos de impeachment foram apresentados na Câmara dos
Deputados, todos engavetados pelo presidente da Casa, o deputado Arthur Lira
(PP-AL). Mas o primeiro julgamento, que trata de um fato isolado, não abordará
as violações ao Estado de Direito, e sim abuso de poder político e uso indevido
de meios de comunicação durante reunião convocada pelo então presidente com
embaixadores de outros países.
Ocorrido em 18 de julho do ano passado, o
encontro com os embaixadores é um capítulo bizarro de uma peça cujo desfecho
poderia ser um golpe de Estado, que, no entanto, foi abortado por falta de
apoio dos comandantes das Forças Armadas. Bolsonaro inovou em sua política
externa, ao chamar representantes de mais de 40 países para um ataque ao
sistema eleitoral doméstico, especialmente pitoresco porque Bolsonaro, durante
28 anos como deputado federal e, finalmente, sagrado presidente da República a
partir de 2018, sempre fora escolhido pelas urnas eletrônicas, que procurou
então difamar.
Para quem viu o filme inteiro, da posse à
fuga para Miami nos últimos dias de mandato, a reunião com embaixadores foi
mais um aviso prévio, desta vez ao mundo diplomático, de que não aceitaria os
resultados das eleições de outubro, por motivos que delineou - uma coleção de
mentiras e invenções delirantes, exposta ao vivo e em cores pela TV Brasil. O
encontro foi original, mas não o motivo. O ídolo de Bolsonaro, o então presidente
Donald Trump, fizera a mesma coisa em entrevistas, afirmando de antemão que as
eleições que disputaria seriam fraudadas.
Basicamente, Bolsonaro, na reunião,
espalhou fake news para o resto do mundo - o público interno já se cansara de
ouvi-las. Ele vazou inquérito sigiloso que averiguava um ataque cibernético ao
TSE, e apontou a facilidade com que um hacker obtivera o código fonte do
sistema e com que alterara nomes e resultados. Disse que urnas eletrônicas só
eram usadas, além do Brasil, por Butão e Bangladesh. Para não deixar de fora o
Supremo Tribunal Federal de seus ataques, afirmou que o ministro Luís Barroso
proferira palestra no Texas sobre “como se livrar de um presidente” e que o
ministro Edson Fachin fora advogado do Movimento dos Sem Terra. Não há uma gota
de verdade nessas alegações.
Em fevereiro, um elo consequente dos
ataques de Bolsonaro às urnas naquela reunião foi anexado ao processo que agora
será julgado, de autoria do PDT - a minuta de decreto de um Estado de Defesa
prevendo intervenção no TSE, encontrada na casa do ex-ministro da Justiça
Anderson Torres. Na vida real as peças se encaixam, mas esse não é o objeto do
julgamento, assim como não o é a busca do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, o
tenente-coronel Mauro Cid, por argumentos legais para um golpe de Estado, como
provam as informações encontradas em seu celular.
A ação do PDT se circunscreve a abuso de
poder político, com o uso de instalações e recursos públicos para atacar
adversários em ano eleitoral. O festival de mentiras e fake news fere vários
capítulos da legislação eleitoral. Resta saber, e os juízes decidirão, se isso
é suficiente para tornar Bolsonaro e seu vice na chapa, Walter Braga Netto,
inelegíveis por 8 anos. Os esdrúxulos argumentos contra a confiabilidade das
urnas eletrônicas, usadas desde 1996 sem contestações relevantes, foram peça
central de Bolsonaro para planejar um caos eleitoral do qual se aproveitaria
para manter-se na Presidência, com o apoio do Alto Comando Militar - apoio que
não veio.
Bolsonaro usou o quanto pôde militares de
alta patente contra as urnas, seu maior pretexto, e disse aos embaixadores que
as sugestões dos militares que participavam de comissão eleitoral não tinham
sido aceitas pelo TSE - quando dez das 15 apresentadas o foram. Sem desmoralizar
uma eleição em que havia chances de perder, Bolsonaro não tinha disponível
outro álibi para uma aventura golpista. A Câmara, mesmo com o apoio do Centrão
ao presidente, rejeitou a volta do voto em papel, e o STF já havia refutado a
iniciativa por duas vezes. Restou a Bolsonaro cativar as altas patentes das
casernas.
O então presidente tentou vencer as
eleições com uma derrama de dinheiro e rasteiras, como o uso da Polícia
Rodoviária Federal para intimidar eleitores de Lula no Nordeste. Bolsonaro
obteve 58 milhões de votos, só 2 milhões de votos a menos que o rival. Em
seguida, cogitações de golpe tomaram o entorno do presidente, até culminarem no
deprimente espetáculo de 8 de janeiro, objeto de uma CPI que ainda investigará
a participação de Bolsonaro no episódio.
Só pelo amontoado de ilegalidades cometidas à luz do dia durante o mandato, Bolsonaro não escapará da inelegibilidade. Seu destino ainda pode mudar no decorrer das investigações e tornar plausível seu maior temor - a prisão.
Rumo paulistano
Folha de S. Paulo
Ao sabor de pressões e recuos, revisão do
Plano Diretor ainda desperta temores
Planos diretores são como um farol
urbanístico de médio e longo prazos, cujo objetivo, de modo geral, é tentar
harmonizar novas construções e equipamentos públicos à vida cotidiana de seus
cidadãos.
Na maior metrópole do país, quase sempre
vítima de expansões vertiginosas e pouco ordenadas, o mínimo esperado é que a
revisão do complexo regramento obedecesse a critérios lógicos, embasados em
estudos de impacto aprofundados —e, por óbvio, sob escrutínio técnico e ampla
consulta popular.
Tudo isso está aquém do que se vê por parte
de vereadores da Câmara Municipal de São Paulo que conduzem o processo.
Bastaram algumas semanas para que fosse
desfigurado o que havia sido desenhado por meses a fio, com propostas de
urbanistas e moradores em audiências públicas.
Na primeira vez, no final de maio, a
permissividade extrema do novo texto, que incluía verticalização
e adensamento quase desenfreados, além de facilidades para ampliar
garagens nos prédios, estimulando o uso de automóveis, causou espanto entre
especialistas.
Chamou a atenção, em particular, que a
reformulação repentina absorvera 18 de 26 propostas apresentadas pelo mercado
imobiliário.
Questionamentos de setores da sociedade e
do Ministério Público não impediram que o projeto fosse aprovado em primeiro
turno dias após a mudança, inclusive com apoio de parte da oposição à gestão
Ricardo Nunes (MDB).
De lá para cá, contudo, a salutar pressão
por mais prudência na concepção regulatória parece ter aplacado, se não o
açodamento, certas convicções do Legislativo.
Entre uma série de recuos em pontos
polêmicos, o relator Rodrigo Goulart (PSD) declarou na segunda (19) que o
substitutivo reduzirá de 1
km para 800 metros o diâmetro no entorno de estações de metrô em
que será permitida a construção de edifícios sem limite de altura —hoje são 600
metros.
Assim como na guinada anterior, pouco se
sabe sobre o que fundamentou tal decisão. O diâmetro intermediário é suficiente
para atenuar impactos construtivos, ambientais e de mobilidade em um cenário de
mudanças climáticas?
Nessa seara, a discussão pode e deve
incluir outras nuances. O Plano Diretor de 2014 previa que, adiante, fossem
incluídos estudos particularizados para cada região, os planos de bairro. Nada
disso avançou, e projetar da mesma forma o entorno de estações de metrô em
Moema, bairro nobre da zona sul, e na periferia da zona leste pode trazer
consequências irreversíveis.
A depender da Câmara, entretanto, parte
significativa do futuro paulistano poderá ser estabelecida em definitivo já nesta
sexta (23). Esse não é o melhor caminho para que a cidade se torne,
um dia, menos desigual e mais sustentável.
Doença do desmate
Folha de S. Paulo
Surto de febre maculosa em SP guarda
relação com a derrubada da mata atlântica
Desde janeiro, o estado de São Paulo
registrou 19 casos de febre maculosa, com cinco mortes desde 12 de junho.
Dessas, quatro estão ligadas a um surto em Campinas.
Como observa Alessandra Nava, pesquisadora
da Fiocruz, a doença não
é registrada na Amazônia, mas todo ano há casos na região paulista.
A diferença, ao que parece, é a floresta. A devastação da mata atlântica causou
desequilíbrios na biodiversidade local, e entre as consequências estão as
doenças infecciosas que afetam humanos.
A enfermidade é causada pela bactéria Rickettsia rickettsii,
que habita o carrapato-estrela. Em São Paulo, ele parasita principalmente
antas. Entretanto, como esse mamífero está quase em extinção na região, o
carrapato adotou a capivara como hospedeiro.
A caça e o desmatamento, ademais, praticamente
eliminaram as onças, predadores das capivaras. Como resultado, houve aumento da
população do hospedeiro. Por fim, a diminuição das florestas faz com que os
roedores entrem em zonas urbanas, intensificando o contato com seres humanos.
A mata atlântica apresenta hoje apenas 24%
de sua cobertura original. Entre
2021 e 2022, foram derrubados 20.075 hectares, uma queda de 7,2% em
relação aos 21.642 hectares dos 12 meses anteriores.
Mesmo assim, o número ainda se mostra muito
elevado quando comparado ao menor já registrado, de 11 mil hectares, em
2017-18.
A capital paulista também sofre os efeitos
do desmate. Em 2020, reportagem da Folha descreveu ocupações ilegais
em zonas de preservação ambiental, que tinham relação com o crime organizado.
Áreas verdes são derrubadas para a
implantação de loteamentos clandestinos, que, entre 2019 e 2020, passaram de 8
hectares para 22 hectares. De janeiro de
2019 a fevereiro deste ano, 85 hectares de mata foram destruídos.
Apenas na zona sul, foram 63 (74% do total)
—ou 88 campos de futebol. Nessa região, ficam as represas Billings e
Guarapiranga, e especialistas apontam para o risco de poluição de mananciais.
Há aí tarefas para as políticas ambiental, habitacional e de segurança pública. Quanto à febre maculosa, o sistema de saúde precisa estar mais preparado para diagnosticar rapidamente doenças relacionadas com a devastação ambiental —que, em boa parte, não pode ser mais revertida.
Senado tem o dever de rejeitar Zanin
O Estado de S. Paulo
Fere a Constituição a indicação de alguém
sem notável saber jurídico.
Tem sido dada como certa a aprovação pelo
Senado do nome de Cristiano Zanin para integrar o Supremo Tribunal Federal
(STF). As notícias são de que, com um intenso trabalho de articulação com os
senadores, o indicado do presidente Lula teria conseguido amenizar as
resistências a seu nome. Seja como for, nada disso modifica o caráter
inconstitucional e antirrepublicano da indicação de uma pessoa para a Corte
constitucional cujo único qualificativo é ter sido o advogado pessoal do
presidente da República.
Trata-se de deboche com o Supremo e com a
Constituição, a merecer categórica reprovação por parte dos senadores.
Existem pelo menos dois sérios motivos para
rejeitar o nome de Cristiano Zanin para o STF. E eles não se baseiam em
questões de natureza político-partidária, mas na estrita defesa da Constituição
e do regime democrático.
Em primeiro lugar, o exercício do poder no
Estado Democrático de Direito nunca é mero arbítrio. A lógica do “eu posso, eu
faço, sem precisar dar satisfação a ninguém” é válida na esfera privada, na
qual a lei assegura amplos espaços de liberdade. Na esfera pública, o exercício
do poder é configurado por parâmetros e critérios definidos por lei. O
princípio constitucional da impessoalidade proíbe o uso do cargo público para
fins pessoais, seja para favorecer amigos, retribuir favores ou ter um advogado
no papel de ministro do STF.
Como dissemos neste espaço por ocasião das
indicações de Jair Bolsonaro ao STF, é inconstitucional “colocar amigos na
Corte” para que, “uma vez lá dentro, eles continuem atuando como amigos e
defensores de seus interesses”. Na ocasião, advertimos que, “mais do que
magistrados, Jair Bolsonaro almeja aliados – se possível, vassalos – do governo
dentro do STF” (ver editorial Sem aprovação automática, 20/10/2020). Na
campanha eleitoral do ano passado, Lula criticou essa perversão do poder, mas
agora, no cargo, fez rigorosamente a mesma coisa.
A previsão constitucional da participação
do Senado no processo de preenchimento das cadeiras do Supremo tem uma função
importante: garantir que a definição dos ministros do STF não seja mera escolha,
mero arbítrio pessoal, do chefe do Executivo federal. O papel do Legislativo
não é somente chancelar a indicação, mas assegurar o respeito à Constituição.
Por isso, os Poderes são independentes.
O segundo motivo a exigir dos senadores um
firme não à indicação de Lula para o cargo de ministro do STF é o
descumprimento dos requisitos constitucionais. Cristiano Zanin pode ser um
excelente advogado e ter um excelente conhecimento do Direito. No entanto, não
dispõe do “notável saber jurídico” exigido pela Constituição.
Para preencher a exigência constitucional,
não basta ter profundo conhecimento do Direito. É preciso que esse conhecimento
seja notável. Não deve pairar nenhuma dúvida sobre sua existência e sua
abrangência. Caso contrário, o conhecimento já não será “notável”. Essa
dimensão pública do saber jurídico da pessoa indicada para o Supremo vincula-se
estreitamente com o papel da Corte. Só dispondo de autoridade, ela poderá
exercer sua função contramajoritária de defesa da Constituição. É imprescindível,
portanto, não haver sombras sobre o saber jurídico de seus integrantes.
Na sabatina do nome indicado para o STF, os
senadores não estarão exclusivamente no papel de avaliadores. Eles também serão
avaliados pelo País sobre seu compromisso com a Constituição. O posicionamento
de cada senador sobre a indicação de Cristiano Zanin não é mera opção
político-partidária, a revelar se faz parte do governo ou da oposição.
Relaciona-se com a defesa da Constituição e do regime democrático, uma vez que
o tema diz respeito à autoridade do Supremo. Apenas um STF composto por
ministros de reputação ilibada e notável saber jurídico tem efetiva capacidade
de defender as liberdades fundamentais e as instituições democráticas.
Não são necessárias grandes conjecturas. O
tema é simples. Com Zanin no STF, a necessária imparcialidade da Justiça ficará
mais evidente ou será ainda mais frágil?
Conversa fiada com o presidente
O Estado de S. Paulo
Como se estivesse jogando conversa fora com
os amigos, Lula usa o aparato estatal de TV para acusar Bolsonaro de tramar
golpe, alimentando a polarização que mobiliza seus devotos
Do que se viu durante as duas primeiras
edições da Conversa com o presidente, programa semanal ao vivo transmitido
pelas páginas oficiais da Presidência e pelos canais da TV Brasil na internet,
as lives do presidente Lula da Silva só não são toscas como as protagonizadas
por Jair Bolsonaro. Fora a notável mudança no apuro técnico das transmissões,
permanece a mixórdia entre desinformação, propaganda de atos do governo,
autopromoção e uso do aparato estatal – no caso, o Palácio da Alvorada e os
equipamentos e servidores da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) – para servir
aos interesses políticos privados do governante de plantão.
Na segunda-feira passada, por exemplo, Lula usou a live para acusar Bolsonaro de “coordenar um golpe” para impedir sua posse. Ou seja, o petista, como se não fosse presidente e como se estivesse com amigos numa mesa de bar, sem responsabilidade nenhuma, se apropriou de uma transmissão viabilizada por recursos públicos para difundir suas teorias sobre Bolsonaro. “Já está provado que eles (os bolsonaristas) tentaram dar um golpe”, afirmou Lula. “E coordenado pelo expresidente, que agora tenta negar”, concluiu o presidente. Em seguida, talvez se lembrando de que não estava ali na condição de cidadão comum, tratou de dizer que tudo será investigado “com muita tranquilidade” e que “todo mundo terá a chance de se defender”. Que bom.
Ora, como presidente, não cabe a Lula fazer esse tipo de acusação. Afinal, a eventual responsabilidade de Bolsonaro pelo infame 8 de Janeiro é objeto de investigação pela Polícia Federal (PF) que ainda está em andamento. A natureza de Lula, porém, sempre fala mais alto do que atributos mínimos esperados de um presidente da República, como temperança, decoro e institucionalidade.
As acusações de Lula já seriam temerárias
mesmo se tivessem sido feitas durante entrevista ou conversa informal. Tanto
pior quando veiculadas por canais oficiais de comunicação, que não se prestam a
esse tipo de discurso político e, vale lembrar, têm seu uso muito bem
regulamentado por lei. Ademais, como qualquer ato da administração pública, a
comunicação do presidente e de representantes do governo deve ser orientada
pelo interesse público. A Constituição é de uma clareza solar ao enumerar, em
seu artigo 37, os princípios norteadores do comportamento de agentes públicos.
Onde estaria a utilidade pública, a
justificar o emprego do aparato estatal como plataforma de comunicação, nas
acusações formuladas por Lula contra seu antecessor? Pode-se dizer que é do
mais alto interesse dos cidadãos conhecer o grau de envolvimento de Bolsonaro,
na condição de presidente e comandante supremo das Forças Armadas, na trama
para subverter o Estado Democrático de Direito no País após a sua derrota na
eleição do ano passado. Mas não cabe a Lula dizer se Bolsonaro é culpado pela
intentona ou se deve ou não ser punido pela tentativa de sublevação. Isso é
tarefa do Judiciário, após a conclusão das investigações da PF e do
oferecimento de uma denúncia formulada pelo Ministério Público.
Esse modelo de lives, a pretexto de
estabelecer uma “comunicação direta” – como se isso existisse – entre
governante e população, tão ao feitio de populistas, é ruim por si só, pois
implica o rebaixamento do debate público democrático, haja vista que o
presidente fica protegido de perguntas incômodas que lhe seriam feitas por
jornalistas profissionais e independentes. É tanto pior porque, no caso das
lives de Lula e de Bolsonaro, se presta a manter vivo o extremismo político que
só interessa aos dois e às suas hostes de apoiadores mais radicais. Não serve
de nada ao Brasil.
A pacificação nacional, tão almejada por
tantos brasileiros, só haverá de vir pelo respeito às leis, ao devido processo
legal e às instituições republicanas. Como presidente da República, Lula
deveria ser o primeiro a compreender isso – e dar o exemplo. Mas é ocioso
esperar esse movimento do petista, cujo compromisso com a pacificação nacional
durou o tempo exato da campanha eleitoral.
Mais jabutis na conta de luz
O Estado de S. Paulo
Mais uma vez, o Congresso colabora para
majorar a energia, agora a título de defender o meio ambiente
O Congresso aprovou a retomada do Minha
Casa Minha Vida. Criado em 2009 e extinto em 2020 para ser substituído pelo
Casa Verde e Amarela, o renascimento do programa habitacional acerta ao dar
prioridade a famílias de menor renda, da chamada faixa 1, abandonadas por sua
versão bolsonarista. Mas, como quase toda medida provisória (MP), a proposta
que resgata uma relevante política pública foi usada como veículo para carregar
os famosos “jabutis”, temas que nada têm a ver com o escopo original do
projeto.
No caso da MP do Minha Casa Minha Vida, a
mera menção ao princípio de que as unidades habitacionais adotem sistemas que
promovam o uso racional de energia foi a desculpa para criar uma modalidade de
contratação que custará nada menos que R$ 1 bilhão por ano. A estimativa consta
de uma importante nota técnica elaborada pela Agência Nacional de Energia
Elétrica (Aneel) e enviada ao Ministério de Minas e Energia, uma vez que os
parlamentares não se dignaram a pedir ao órgão regulador as projeções de
impacto da medida antes de aprová-la.
A proposta já incluía a possibilidade de
instalação de painéis solares nos projetos do programa habitacional. A questão
é a forma que os deputados e senadores encontraram para viabilizar o negócio:
em vez de considerar que essa fonte de energia já conta com subsídios e onera
todos aqueles que não têm as estruturas, os parlamentares resolveram obrigar as
distribuidoras a comprar os excedentes de energia produzidos por esses sistemas
a um valor fixo, quase seis vezes maior do que as empresas pagariam no mercado.
O projeto de lei de conversão ignora o fato
de que as concessionárias estão com sobras de contratos de energia, ou seja,
não precisam de mais eletricidade para atender os consumidores, sobretudo mais
cara. Mas isso não conteve os deputados e senadores. Afinal, as empresas até
arcarão com esse custo em uma primeira etapa, mas poderão repassar o prejuízo
aos consumidores na forma de reajustes tarifários no futuro.
Nesse modelo, o lucro pela venda dos
excedentes de energia, pasmem, não ficará com o “dono” dos painéis solares, mas
com o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), um dos financiadores do
Minha Casa Minha Vida. Os empresários que importam e instalam os painéis
ficarão muito felizes com o aumento exponencial de suas vendas. O único
ludibriado é o consumidor, que pagará por essa festa sem nem imaginar por que
sua conta de luz está cada dia mais cara.
As justas preocupações ambientais da sociedade não podem ser capturadas por práticas que, a título de promover uma agenda sustentável, não passam de maquiagem – prática conhecida como greenwashing. Espera-se que o presidente Lula da Silva vete esses dispositivos. Mas passou da hora de os parlamentares se anteciparem e impedirem o avanço dessas propostas ainda no âmbito do Legislativo. Depois de aprová-las de maneira inconsequente, não adianta convocar os diretores da Aneel a comparecer a audiências públicas para questionar por que a conta de luz nunca fica mais barata. A resposta está no próprio Congresso.
É preciso baixar as taxas de juros
Correio Braziliense
Não há explicação para o fato de o Brasil
ter a maior taxa de juros real do mundo e conviver com inflação menor do que os
países desenvolvidos
Não há mais nenhum motivo real para que o
Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central não inicie os cortes na
taxa básica de juros, a não ser a impossibilidade de se desviar das previsões
do mercado financeiro, ainda que atender à expectativa vá frustrar empresários,
governo e sociedade, que esperam ansiosamente pelo início da queda da Selic,
hoje em 13,75% ao ano. Não há explicação para o fato de o Brasil ter a maior
taxa de juros real do mundo e conviver com inflação menor do que os países
desenvolvidos. É certo que o núcleo da inflação monitorado pelo Banco Central
mostra certa resiliência dos reajustes de preços, mas nada que se estenda a um
horizonte mais longo. Esta semana, o próprio mercado financeiro apontou para
redução das expectativas de inflação e da taxa de juros.
Ao cumprir estritamente o que espera o
mercado, o Banco Central não demonstra nenhuma independência em relação aos
agentes financeiros. Na reunião que termina hoje, o Copom deve manter a Selic
em 13,75% e divulgar um comunicado indicando cortes a partir do encontro de
agosto, no segundo semestre. Tudo seguindo o script do mercado financeiro. E a
pergunta que é necessária fazer: Qual é a diferença entre promover um corte de
0,25 ponto agora e outro de 0,25 na reunião de agosto, ou fazer um único corte
de 0,5 ponto? Mudança nas expectativas. E aqui não se trata de uma redução
passada como foi feito, situação sempre citada para justificar a demora no
corte das taxas quando as condições são favoráveis.
Mas, nesse caso, o Banco Central terá que
ajustar, uma vez que até agora as projeções apontavam para a Selic a 12,5% no
fim do ano, apontando para corte de 1,25 ponto percentual. Só que o mercado
espera a Selic a 12,25%, ou 0,25 ponto a mais de redução. Para 2024, as
previsões foram reduzidas de 10% para 9,5%, ou 4,25 ponto percentual a menos em
relação ao patamar atual da Selic. O próprio mercado indica para o Banco
Central que a taxa de juros pode cair mais, uma vez que as projeções para a
inflação também estão em queda.
Esta semana, a previsão do IPCA para o ano
foi reduzida de 5,42% para 5,12%. O percentual ainda está acima do teto da meta
para 2023, que é de 4,75% (meta de 3,25% com tolerância de 1,5 ponto para cima
ou para baixo). Mas, para os próximos anos, as projeções caminham para o centro
da meta, que é de 3% para 2024 e 2025. As estimativas colhidas pelo Banco
Central apontam para um recuo de 4,04% para 4% para o próximo ano e de 3,90%
para 3,80% no seguinte. Ainda fora do centro da meta, mas dentro do teto fixado
pelo Conselho Monetário Nacional.
O que se espera do Banco Central é que ele
olhe também para as condições da economia. Juros altos estrangulam o orçamento
das famílias e limitam a capacidade de investir das empresas e mesmo de gerir
seu fluxo de caixa. Não é uma questão de governo contra a autoridade monetária,
porque nessa batalha a sociedade é sempre excluída e sofre as consequências do
arrocho monetário, que já dura praticamente um ano. É preciso mais do que
apenas uma sinalização de que a Selic vai cair na próxima reunião.
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