O Globo
Eis o familismo, o patriarcalismo e o
baronato de volta, estabelecendo por lei que “políticos expostos” podem fazer
todas as falcatruas e dispensar todas as normas éticas
É revoltante tomar conhecimento do Projeto
de Lei que criminaliza quem “discriminar pessoas politicamente expostas”. Além
de seu conteúdo despudoradamente despótico, revelador de um manifesto espírito
de fidalguia, ele é impreciso.
De saída, cabe perguntar o que, para seus autores, significa ser uma “pessoa politicamente exposta” numa democracia. Seriam os professores, os padres, ministros e rabinos que pregam suas crenças, os que escrevem nos jornais e opinam contra ou a favor de algum assunto ou indivíduo, na tentativa de clarificar o que ocorre na esfera política? Quem não seria “politicamente exposto” num sistema cujo atributo inviolável é o direito de manifestar opiniões no sentido de tornar mais justo e equilibrado o cenário coletivo? Se, a partir de Montesquieu, Rousseau, Jefferson e Madison, consolidou-se uma cidadania aberta ao par igualdade e liberdade, quem não seria uma “pessoa politicamente exposta”?
Seria possível, num Estado Democrático de
Direito, não ter papel político e assim ficar “exposto” como um ativista de
determinadas preferências? Quem então seria esse vitimado “politicamente
exposto” de que fala a lei, senão todo cidadão que, em qualquer arena, discuta,
critique, acuse, denuncie ou simplesmente opine e analise o grande palco
coletivo?
Pelo que entendi, esse projeto tem como
objetivo discriminar para cima ou distinguir “políticos profissionais”. Os que
vivem da política e fazem parte da imensa e doentia máquina do Estado
brasileiro e que, como legisladores, já são discriminados (e como!!!) não como
vítimas, mas por seus escabrosos salários (num país onde seus eleitores passam
fome), regalias, prerrogativas, foro e formidáveis privilégios.
O que mais chama a atenção deste modesto e
cancelado estudioso do permanente e ileso elitismo (de direita e esquerda)
nacional é sua arquitetura moral. É a exibição, agora manifesta, de uma “ética
de condescendência” que rotineiramente legisla em causa própria, ao lado da
tentativa de hierarquizar mais claramente o sistema, sacralizando juridicamente
o mandonato brasileiro.
Essa lei não chega do nada. Muito pelo
contrário, ela é mais um aborto desta barafunda político-jurídica em que nos
metemos, pois tal excrescência nada mais é do que a legalização do “você sabe
com quem está falando?”.
Se aprovada, ela criminalizará o direito de
discordar e de exercer a cidadania, impedindo os “comuns” que elegem os
“politicamente expostos” de honrar os papéis de servidores para os quais foram
eleitos. Horroriza saber que a Câmara tenha engendrado uma lei que bloqueia
justamente um dos elementos-chaves da democracia: o direito de representação
digna e coerente.
Num outro nível, trata-se, como indica o
título destas indignadas linhas, de uma real e reacionária tentativa de
restauração da nobreza. De um corpo social e juridicamente acima dos cidadãos
comuns. Uma “ordem” protegida das vigilâncias igualitárias responsáveis pela
invenção reacionária do popular VSCQEF como ritual. De um segmento singular,
sujeito a leis privadas (privilégios) extensivas aos integrantes de suas
dinastias. Eis o familismo, o velho patriarcalismo e o adorado baronato de
volta, estabelecendo por lei que “políticos expostos” podem fazer todas as
falcatruas, dispensar todas as normas éticas porque, como nobres, estão acima e
isentos das normas deste horrível igualitarismo chamado democracia!
Restaurada a nobreza, já temos rei, rainha
e corte. Será, talvez, um pouco triste dispensar o eventual VSCQEF, porque os
novos nobres, eleitos pelo povo pobre, desvalido e faminto, surgirão em toda a
sua corrupta grandeza, devidamente emblemados a ouro e prata, Chanel e BMWs, de
modo que todos saberão quem são e o poder de que dispõem: o poder de impedir a
mudança.
Afinal, ficar no mesmo lugar neste mundo
globalizado, mas em plena destruição, já é alguma coisa...
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