Folha de S. Paulo
Indicações recentes comprometem isenção,
independência e autoridade moral
Como o verso e o reverso de uma moeda, a
indicação pelo presidente da República de um novo ministro para o Supremo Tribunal
Federal, corte encarregada de atuar como guardiã da Constituição, teve dois
lados.
O primeiro é de ordem moral. Se Jair
Bolsonaro justificou sua primeira indicação alegando que precisava ter
no STF alguém
com quem pudesse tomar tubaína, Lula afirmou
que gostaria de ter na corte alguém que pudesse chamar ao telefone quando
quisesse —este
último deverá ser sabatinado
nesta quarta-feira (21) no Senado. Oportunismo ou má-fé? Ignorância ou
falsa esperteza?
Qualquer que seja a resposta, indicações como essas afrontam os princípios constitucionais da impessoalidade e independência do Supremo, apequenando-o, aparelhando-o politicamente e comprometendo sua isenção, independência e autoridade moral.
O segundo lado envolve a despreocupação do
ex e do atual presidente com os riscos de inconsistência técnico-jurídica das
tomadas pelos ministros que indicaram. Incapazes de diferenciarem Estado e
governo e de separarem governo de partido do governo, Bolsonaro e Lula jamais
se preocuparam com a baixíssima qualificação dos nomes que escolheram. Ambos
talvez nem saibam que a adjudicatura não pode ser exercida sem um mínimo de
competência por quem, apesar de ter sido advogado, carece de conhecimento de
teoria do direito e de doutrina, não tem pensamento consolidado e não
compreende que pertencer a uma ordem jurídica também implica fruir do
reconhecimento da condição humana. Trata-se, por isso, de um perigoso
retrocesso institucional.
Como lembra Frederico
de Almeida, professor de ciência política da Unicamp, em "A Nobreza
Togada: as elites jurídicas e a política da Justiça no Brasil", desde a
reforma universitária de 1968 e da expansão dos cursos de pós-graduação o STF
passou a contar com ministros pós-graduados. Esse fato se tornou evidente após
a redemocratização do país. A partir daí, segundo Almeida, 40% dos indicados
possuíam o título de mestre e/ou de doutor. E 90% dos ministros que chegaram à
corte após a queda da ditadura tinham experiência docente, eram respeitados por
seu saber acadêmico, conheciam direito comparado, sabiam enumerar as aporias da
hermenêutica jurídica, tinham posição definida acerca do caráter prescritivo da
Constituição e já haviam publicado livros. Em 2007, dos 11 ministros do STF, 9
possuíam o título de pós-graduação stricto sensu e 10 eram professores em
respeitadas universidades públicas.
Essa era uma evidência de que atendiam ao
requisito constitucional de notório
saber jurídico. Por mais que essa expressão seja algo imprecisa, aqueles
ministros tinham cultura jurídica. Sabiam pensar com método. Haviam escrito
teses. Vários eram reconhecidos internacionalmente como doutrinadores. Tinham o
que falta ao tomador de tubaína, ao terrivelmente
evangélico e ao advogado pessoal de quem o indicou.
Quem conhece o que esses três pensam acerca
de questões jurídicas candentes, após terem saído do baixo clero do universo
jurídico para vestirem uma toga na mais alta corte do país?
Sabem eles responder sem consultar o Google
qual foi o período histórico em que os direitos humanos assumiram a forma de um
elenco sistemático de princípios? Conseguem explicar por que o conceito de
política, em inglês, é expresso por três palavras distintas
—"polity", "politics" e "policy"? Sabem
diferenciar regras e princípios e as implicações hermenêuticas dessa distinção?
Partindo da tensão entre universalismo versus relativismo, conseguem
desenvolver uma abordagem pluralista dos direitos humanos?
Que a Suprema Corte precisava de nomes com
preparo, história e independência, isso é fato. O problema é que o preço do
desprezo a essa obviedade é alto, na medida em que abre caminho para todo tipo
de oportunismo e casuísmo. A conversão do tribunal em "anexo do governo de
ocasião", como afirmou a Transparência Internacional, é uma afronta ao
princípio constitucional da autonomia dos Poderes, comprometendo
assim a isenção e a legitimidade da corte como guardiã da Constituição
e garantidora da democracia.
*Professor titular e decano da Faculdade de Direito da USP
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