sábado, 4 de janeiro de 2025

O burocrata irreverente - Alvaro Costa e Silva

Folha de S. Paulo

Sua estátua fica em Copacabana, mas o canto do poeta no Rio era o vão de pilotis do Palácio Capanema

Todo mundo sabe – principalmente os ladrões de óculos – que a estátua de Carlos Drummond de Andrade fica na avenida Atlântica. Obra do artista Leo Santana inspirada em foto de Rogério Reis, foi inaugurada em 2002, no centenário do poeta. Uma escolha de lugar perfeita, o que nem sempre ocorre com homenageados. Drummond está sentado num banco, de pernas cruzadas e de costas para a praia. Morando havia muitos anos entre Copacabana e Ipanema, já não se espantava com o mar.


Se a estátua ficasse na esplanada do Castelo não seria tão visitada. No entanto, o Castelo foi o canto de Drummond no Rio. Ele era ali uma figura popular, que podia ser vista quase todos os dias não apenas ao vivo, de terno e gravata, pasta na mão e andando com os braços colados ao corpo como no retrato exposto na vitrine da loja de um fotógrafo profissional. "Como se fosse um top-model ou um garoto-propaganda", brincava o amigo Otto Lara Resende.

Em 1944, Carlos, o funcionário público, entrou pela primeira vez no Palácio Capanema, a sede do Ministério da Educação no Castelo. Trabalhou no prédio durante quase 30 anos. Escreveu no seu diário: "Lá embaixo, no jardim suspenso do Ministério, a estátua de mulher nua de Celso Antônio, reclinada, conserva entre o ventre e as coxas um pouco da água da última chuva, que os passarinhos vêm beber, e é uma graça a conversão do sexo de granito em fonte natural".

No documentário "O Fazendeiro do Ar", de Fernando Sabino e David Neves, o burocrata irreverente aparece e desaparece num esconde-esconde entre as pilastras do Capanema. No recém-lançado "A Intensa Palavra" —seleção de crônicas inéditas em livro publicadas no Correio da Manhã entre 1954 e 1969—, Drummond flagra no Castelo um menino de 10 anos vendedor de limão soluçando com a cabeça entre as mãos: "O rapa levou meus limões e arrebentou o caixote".

O Palácio Capanema —que escapou por pouco da arquitetura de destruição promovida no governo Bolsonaro— será reaberto após 10 anos. Não há estátua de Drummond, mas quem olha o vão de pilotis e a fachada com azulejos de Portinari percebe uma sombra feliz.

Nenhum comentário: